a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho, ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval do notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa.
***
tiago araújo
*
continuei a regressar ao lugar onde me habituei a grotar lobo até muito depois
de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do
medo extintas com cobertores e alguma companhia - com uma presença
recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a
dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados
com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a
memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de
catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o
santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua
morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela
e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio.
nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria
uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência
num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.
***
tiago araújo
*
as formas de conhecer-te são só duas
ou três; esta é a que demora mais tempo.
a chuva parou e continuamos distraídos neste
amor de cabotagem, nunca demasiado
longe ou perto da carne e dos órgãos que uma
abóbada de ossos protege. cumprimos
a liturgia das horas, repetida sem convicção ou
eficácia, e por vezes as palavras começam
a fazer sentido, como os gestos com que
te aproximo de mim, com uma só mão
e algum sono. uma navegação lenta,
familiar e confortável, porque
essa é a melhor forma de te conhecer
os dedos e o modo como os usas
para fazer tranças às horas, como quem
tece cabelos ou desfia um rosário
sem murmúrios, apenas a técnica de rodar
terços e mistérios no fundo da mão
para entreter os pretendentes e
esperar que eu regresse das longas
viagens - dez anos de cada vez -
em que me ausento sem sair de casa.
esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs
vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,
com as quais tenciono adormecer-te (como
na história que contamos todas as noites), porque
é essa a única forma de te conhecer
os medos e interpretar os sonhos, escrever
ao teu lado, enquanto dormes, a lista
das tarefas diárias com que nos ocupamos a
matar o tempo.
***
tiago araújo
*
ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário,
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.
***
tiago araújo
*****************
enquanto dormias coloquei o teu corpo sobre o mar
e atravessei o quarto e um pequeno-almoço de laranjas junto à
janela
e de jornais pelo chão
pelo corredor
enquanto o teu corpo continuava a boiar
sobre a cama.
os órgãos
mantêm o corpo na linha espelhada da superfície
no equilíbrio entre os pulmões que querem regressar ao ar de
que são feitos e o coração
que é de água e quer mergulhar
arrastando tudo para as profundezas do mar e da consciência.
enquanto dormias despenharam-se
três cometas sobre o estuário do rio
revolvendo as águas
(talvez fosse eu que boiasse e tu que me
observasses do cimo das águas e através da linha de mercúrio).
e resolvi partir
para fundar outra cidade.
uma intuitiva lei de equivalências transporta-me
do ondular do teu peito para a respiração do mar
no teu corpo adormecido.
onde o nosso filho que é ainda apenas
um plano feito ao jantar
com os pratos já vazios e os talheres faiscando prata entre restos de comida
cresce erguendo abóbadas sobre o lago em que se banha
dormindo no equilíbrio das águas.
são os teus pulmões que nos têm mantido à tona,
na superfície do espelho que
não pertence a nenhum dos mundos a que serve de barreira
de refúgio.
enquanto dormias regressei
para te ver dormir.
***
Tiago Araújo (1973)
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas