Segunda-feira, 21 de Maio de 2012
(sábado)

 

a manhã ainda pode ser salva se o tempo

mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som

e o sentido destas frases que recito em jejum

de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,

entre papéis e o som distante do telefone,

um despertador absorvido pelo sonho, ao acordar não

consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio

pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade

que me sobraram do dia anterior.

 

na infância ensinaram-me como é perigoso

acordar um sonâmbulo, lição que tenho

aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.

o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando

de modo progressivo. ouço ao longe,

pela janela aberta, os sons do

carnaval do notting hill, um sinal de que o

verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão

cega que não tem recebido todo o prazer ou o

reconhecimento que merece. chove.

 

e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada

de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.

daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais

onde se vão saudar paquetes

que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos

entre o ruído e o excesso de informação que

caracterizam o século vinte e um, sem

que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.

 

a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas

como quem incendeia os barcos à chegada a terra

para não ter forma de regressar a casa.

 

***

 

tiago araújo

 

*


lido em: resumo: a poesia em 2011

publicado por carlossilva às 13:36
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Domingo, 11 de Dezembro de 2011
(gritar lobo)

 

continuei a regressar ao lugar onde me habituei a grotar lobo até muito depois

de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do

medo extintas com cobertores e alguma companhia - com uma presença

recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a

dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados

com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a

memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de

catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o

santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua

morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela

e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio.

nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria

uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência

num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.

 

***

 

tiago araújo

 

*

 

 


lido em: Publico

publicado por carlossilva às 09:28
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Terça-feira, 17 de Maio de 2011
(sj-06)

 

as formas de conhecer-te são só duas

ou três; esta é a que demora mais tempo.

a chuva parou e continuamos distraídos neste

amor de cabotagem, nunca demasiado

longe ou perto da carne e dos órgãos que uma

abóbada de ossos protege. cumprimos

a liturgia das horas, repetida sem convicção ou

eficácia, e por vezes as palavras começam

a fazer sentido, como os gestos com que

te aproximo de mim, com uma só mão

e algum sono. uma navegação lenta,

familiar e confortável, porque

essa é a melhor forma de te conhecer

os dedos e o modo como os usas

para fazer tranças às horas, como quem

tece cabelos ou desfia um rosário

sem murmúrios, apenas a técnica de rodar

terços e mistérios no fundo da mão

para entreter os pretendentes e 

esperar que eu regresse das longas

viagens - dez anos de cada vez - 

em que me ausento sem sair de casa.

esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs

vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,

com as quais tenciono adormecer-te (como

na história que contamos todas as noites), porque

é essa a única forma de te conhecer

os medos e interpretar os sonhos, escrever

ao teu lado, enquanto dormes, a lista

das tarefas diárias com que nos ocupamos a

matar o tempo.

 

***

 

tiago araújo

 

*


lido em: resumo a poesia em 2010

publicado por carlossilva às 01:02
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Domingo, 25 de Abril de 2010
o lugar do morto

 

ao teu lado, no lugar do morto, enquanto

conduzes a conversa a uma frase sem

preparação. chegámos tarde à praia,

como a quase tudo. o vento levanta o

pó do parque de estacionamento e não

saímos do carro. não sei a resposta certa

e por isso represento mal o meu papel secundário,

limito-me a ficar em silêncio, onde

sempre me senti mais confortável.

um lugar sombrio, discreto, abrigado

e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.

 

***

 

tiago araújo

 

 

*****************


lido em: resumo - a poesia em 2009

publicado por carlossilva às 15:56
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Terça-feira, 18 de Novembro de 2008
sj-01

enquanto dormias coloquei o teu corpo sobre o mar

e atravessei o quarto e um pequeno-almoço de laranjas junto à

janela

e de jornais pelo chão

pelo corredor

enquanto o teu corpo continuava a boiar

sobre a cama.

os órgãos

mantêm o corpo na linha espelhada da superfície

no equilíbrio entre os pulmões que querem regressar ao ar de

que são feitos e o coração

que é de água e quer mergulhar

arrastando tudo para as profundezas do mar e da consciência.

enquanto dormias despenharam-se

três cometas sobre o estuário do rio

revolvendo as águas

(talvez fosse eu que boiasse e tu que me

observasses do cimo das águas e através da linha de mercúrio).

e resolvi partir

para fundar outra cidade.

uma intuitiva lei de equivalências transporta-me

do ondular do teu peito para a respiração do mar

no teu corpo adormecido.

onde o nosso filho que é ainda apenas

um plano feito ao jantar

com os pratos já vazios e os talheres faiscando prata entre restos de comida

cresce erguendo abóbadas sobre o lago em que se banha

dormindo no equilíbrio das águas.

são os teus pulmões que nos têm mantido à tona,

na superfície do espelho que

não pertence a nenhum dos mundos a que serve de barreira

de refúgio.

enquanto dormias regressei

para te ver dormir.

 

***

Tiago Araújo (1973)


lido em: Fórmulas

publicado por carlossilva às 02:30
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