bebo onde existe sede.
a mão arrefece com o peso da cabeça.
este silêncio resgata palavras
para além dos factos magros e esguios.
o meu sangue conhece o amor.
leio Östen Sjöstrand
lia Östen Sjöstrand há cinco minutos atrás.
alguém me chamou e tudo ficou diferente.
não digo que seja apenas este poema.
não é, claramente, apenas este poema.
bebo onde existe sede.
***
sylvia beirute
*
quero viver contigo
numa cidade-rapaz
e jantar num restaurante situado no ombro
talvez mais tarde um passeio pelo peito
esconder-me contigo na floresta do peito
oh mas nunca conhecer
esse rapaz que é cidade
nem o seu coração que bate como trovoada
a sua insanidade saudável
mas no final do dia
quero deitar-me contigo
ouvindo a sua respiração suave
{entrando na sua respiração aí suave}
e falar para esta cidade
em forma de corpo indecente
esperando suas reacções mais espontâneas
seus sonhos mais nefastos
e quando a cidade acordar
fingir-nos-emos
mitológicos como a dissolução
dos cúmplices
e viveremos atrás dos olhos
num interstício da alma.
***
sylvia beirute
*
há toda uma gratidão em aceitar o universo.
todas as pequenas coisas formam uma grande coisa.
há um parentesco desconhecido entre todo o conhecido.
o meu mundo tem ligação directa aos deuses.
há uma força da natureza que age na raiz das constelações.
há um erro que me pensa a fim de me construir.
há uma maneira de aproximar e que me dá todas as matérias.
e todas as matérias são feitas de paz, luz e bons espíritos.
há um compromisso e uma responsabilidade de mim para mim.
o meu dia é a minha caneta, o meu papel.
e no final do dia o universo requer um pensamento
que absorve palavras absolutamente inteligentes
e que o resumem na noite brilhante.
esse pensamento é a devolução do dia em forma
de energia para o sonho seguinte, o dia seguinte,
um novo passo, um novo começo.
há uma renovação constante em mim
na maneira de me dar e de me devolver.
***
sylvia beirute
*
deixar que me amem é rodear {eu}
a compreensão de outrem. há actividade nesse lado passivo.
{na mulher sã há mais actividade no
lado passivo que no lado activo.}
e depois substituir o amor: porque a actividade
do lado passivo consegue-o,
uma vez que o optimismo de tal acto
se basta na área da provocação.
{e de resto}, o intestino mantém a sua função,
o aplauso entre duas mãos é injectado de verdade
e música. {os átomos} são aproximados
e isso chega para proibir a monotonia.
{depois disso}, passivamente, o amor é uma hipótese
sobre a beleza que é um acumular de belezas,
sobre a morte que é um acumular de mortes ou vidas,
sobre a vida que é um acumular de vidas ou mortes,
sobre a idade que é a única violência sobre o corpo
e é uma coreografia que avança
ao encontro de DEUS.
***
sylvia beirute
*
.
dias debaixo da força das raízes.
sesteando
a lonjura de um infinito menor.
a gramática cresce para silêncio
e é a sensatez que encontra
o título da antítese.
um outro ser ganha o desejo
de um outro.
a sensibilidade é uma questão
de sim ou não.
os dias morrem em varandas
de não casas.
e eu sou um pouco de todos os nadas.
com o caroço de todo o capricho,
a ferramenta de todo o prazer.
***
.
sylvia beirute
*
porque o tempo é de corpo, {de passagem},
porque a boca é de nomes próprios, do verbo viver-morrer
dobrado sobre si mesmo como duas cores
que se misturam e imitam,
porque a tua borboleta percorre um pequeno país
que bate as asas no sentido oposto,
porque vens sem corpo, por entre os satélites, em
direcção ao amor conclusivo,
porque o lugar que há em ti não tem onde ficar:
O silêncio é a recompensa da tua permanência.
mas quem decifra o silêncio, querido herberto,
não é quem permanece.
***
sylvia beirute
*
procurando a tua cabeça: quero acordar-te, devolver-te
ao meu útero, teu colar planetário,
fazer-te regressar ao sangue de olhos fechados e incubadoras,
soterrar o teu nome no meu nome, o teu movimento
no meu santuário faminto,
a minha culpa e aguaceiros no teu desejo indeciso de
beleza e desvios. dar-me-ás o teu azul
para que o meu vermelho denso o golpeie de ocupação e pele,
para que duas solidões
se aconcheguem e tornem uma só. e depois, mais tarde,
numa meia-noite de existência avulsa, dentro de mim
dirás o sexo, o sexo
como arredores de um lugar belo.
***
sylvia beirute
(faro, 1984)
************************
e na luz inadequada se move o teu corpo como
algo por dizer,
projectante sem confundir o interior da mão
com um rosto que baixou ao subsolo do silêncio.
e imaginarás algo.
e pegarás no teu ponto. na tua vírgula.
gritarás um verso sem que as palavras individuais
o notem, o oiçam a perfurar o seu
próprio verbo.
e arremessando esse ponto, e essa vírgula, ambos
em direcção ao céu introspectivo e especulativo
das cores que lhe concretizam a profundidade, ganharás
tempo; tempo para que o verso se espalhe a partir
do seu gomo infindável,
contamine o eco difuso da mão de vidro, guarde
o bom-senso de um revólver que espera atento
a morte que falta a um corpo.
e não tarda regressarão caindo com a mesma força
que aquela que usaste para cima: o teu ponto magnífico,
a tua vírgula com material e forma de lupa,
como pregos por cima do teu verso com
formato de raio e cuidado, com laringe de flecha e erro,
com lisonjeio sobre o tempo invertebrado.
quando caírem sobre ti, sobre o teu regresso íntimo,
saberás por onde continuar, e sobretudo: onde parar.
***
Sylvia Beirute
(faro, 1984)
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o acto de perguntar é uma confiança expectante,
a veterania de um exemplo acaba por matá-lo,
mas pouco disto é essencial para já:
na poesia, enquanto dilúvio da existência, as
influências do poeta são as veias do seu poema homicida,
veias que carregam químicos dispostos livremente
no corpo, mudando de lugar,
subindo aos olhos que lêem e que tentam
colonizar hemorragias
nos ouvidos puramente visuais.
mas haverá sempre alguém na audiência
que pergunta,
que questiona directamente o poema e o seu exemplo,
alguém que interpela a
legitimidade de quem redige e assina o que é, afinal, da natureza,
alguém que pressente muros de berlim, ouvidos, narizes, ilhas,
simulacros do dessonhado, do oculto.
e nesse momento eu sorrio e não deixa de me ocorrer
que pressentir nem sempre te levará
à infância de um sentimento.
***
sylvia beirute
(faro, 1984)
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