Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
***
sophia mello breyner andressen
*
Um homem de olhos fechados procurando
Dentro de si memória do seu nome
Um homem na memória caminhando
De silêncio em silêncio derivando
E a onda
Ora o abandonava ora o cobria
Com vagos olhos contemplava o dia
Em seus ouvidos
Como um longínquo búzio o mar zunia
Líquida e fria
Uma mão sobre os seus ombros escorria
Era a onda
Que ora o abandonava ora o cobria
Um homem só n’areia lisa inerte
Na orla dansada do mar
Nos seus cinco sentidos devagar
A presença das coisas principie
No branco nevoeiro a deusa o via
Solitário erguendo-se do mar
Os cabelos com algas misturados
Os ombros luminosos e molhados
O seu corpo era como uma coluna
Sustendo o equilíbrio dos espaços
Água e luz corriam dos seus braços
E uma onda quebrada percorria
O rasto que deixavam os seus passos
***
sophia mello breyner andressen
porto, 1919 - 2004
*****************************
[manuscrito publicado na Única - Expresso de 04.12.2010]
Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
***
sophia de mello breyner andresen
porto, 1919 - 2004
*****
Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.
Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Erasa pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.
Sonho e presença
Duma vida florindo
Possuída e suspensa.
Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido, puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
***
Sophia de Mello Breyner Andresen
******************************************
Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
***
Sophia de Mello Breyner Andresen
*********************************
Os espelhos acendem o seu brilho todo o dia
Nunca são baços
E mesmo sob a pálpebra da treva
Sua lisa pupila cintila e fita
Como a pupila do gato
Eles nos reflectem. Nunca nos decoram
Porém é só na penumbra da hora tardia
Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio
Que à tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo frio e vítreo
***
Sophia de Mello Breyner Andresen
***************************************************
Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.
Sophia de Mello Breyner Andressen
“No Tempo Dividido e Mar Novo”,
Edições Salamandra, 1985, p. 67
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas