Em ausência de respiração absorvíamos ar com farinha
neve pura
as papas dos pobres de nós
(quando havia açúcar não havia café):
restos das cartilhas de racionamento metidos entre as mós do juízo
final
o linho da fome
tão branco
rodeava como um anel de Saturno as paredes do estômago
a fita dos chapéus de palha
e afeitos a morrer dia após dia
contemplávamos barro chícharos estrondos demolidores dentro
olhos como maletas nas que o mundo se dava por vencido
uma intuição de lágrimas escondidas nas rugas bimilenárias das anciãs
aturdidas e negras
como os seus vestidos de luto da idade do ferro.
Em ausência de amor
um saiote comido pela traça e pelo sol posto a secar na lareira
continha os últimos escritos de Simone de Beauvoir
e o aborto que matou nas profundezas do palheiro
a Benigna de Remígio.
Os seus lábios amorados que nunca vi
flutuam no meu pensamento
engancha-se-me o coração
querida toda
nunca correspondida
pasto da eternidade que não há
em ausência de amor.
Em ausência de História
escrevíamos em cadernos de lousa que se apagavam com cuspo
e voam formando círculos no observatório de Greenwich
pois em nenhum mapa aparece este nome venenoso
Vilarmao Vilarmao ao pé de nenhum santo padroeiro
na merda da diocese do nada
só há um pátio redondo
a elipse espiritual por onde saem os porcos do cortelho
e um tractor
Lu-Ve 34576 para delimitar o espaço.
Em ausência de Saber
a casa da professora jaz como um cadáver exposto à chuva
com as vigas tentando ainda sustentar a tabuada do três
um problema de aritmética que nunca resolvemos
mas há dias em que uma linha recta traçada num quadro negro antigo
resplandece na sua estrutura óssea
e todo o nosso pequeno mundo grunhe pobrezinho ele
como se rezasse um rosário digno da existência de Deus.
Em ausência de palavra
abundou-nos o berro denunciador que é a noite do mocho
em ausência de pão
em ausência de leite
em ausência de trigo
contra o dia cabrão que se erguia mais cedo que ninguém.
Em ausência de futuro
rangeram as rodas dos carros ou seriam acaso metáforas deterioradas
aves de mau agoiro que ostentam o poder.
O resto dos animais
vomitam sobre os prados
os restolhos de milho com que se criaram
em sinal de dó
sim porque em ausência de futuro
só há ausência
e talvez isto que digo:
Em ausência de ti
de tanto morder ervas para conter o espasmo
digo o teu nome até que a língua seque
e fico toda igual a ti antes e depois do tempo
fazendo a fotossíntese do amor
na vanguarda do nada
onde só se pode viver pintada como um monocromático verde
***
olga novo
*
[vertido para português por BlogNi]
(CANTO FRATERNO PARA CARLOS NOVO)
I
Como aranhas que se abraçam
as minhas pestanas encontram-se na noite
e mesmo ao fechar os olhos
vejo a tua bola de couro
lançada ao infinito da nossa eira de cima
circulando entre os trevos e o arame da roupa
e os teus olhos de menino a calcular a parábola exacta
descrita pela bola entre as margaridas e o ar.
Acaricias tal qual um clavecino
mas tu não o sabes.
Como a porta do Inferno de Rodin
fecho o ferro forjado da vista
e mesmo ao encontrar-me cara a cara com a retina
vejo a tua bicicleta humilde
que circulava à velocidade de um astro
sem freios nem pneumáticos e algum raio partido
mas tu partias o espaço pelo tempo
e a fórmula consentia com ternura
levar-te lá onde tu quisesses.
A tua bondade é artesanal
como o pão da casa
ou a música de um órgão rústico
mas tu não o sabes.
Deixa as vacas comerem os medos infantis
deixa-as remoer entre ferrã e carolos o frio
que passaste enquanto velavas para que comessem o pasto
e engordassem com flores
foram-se com os cornos abertos ao horizonte
levando com elas aquele que foi o nosso mundo.
Dormiam as cifras a sua soma nos teus cadernos de contas
cansados de trabalhar
com as tuas mãos pequeninas
as crostas dos teu joelhos feridos
brilham como a casca de um sol infantil
e a tua inteligência tornava-se maior entre cerejas maduras
e calças curtas
tocavas com um dedinho um número que treme como uma borboleta
e sabias que o seu coração podia dividir-se em três partes.
Olhavas talvez os cântaros do leite
e revelava-se a eterna forma do cilindro
ninguém sabia que três catorze dezasseis era um número pi
e tu
brincavas com ele no meio dos grilos.
Regressavas da tua mente brilhante
tão humilde como quem ficou em branco
no meio da neve
mas tu não o sabes.
Aprendi a contar com favas que me davas
a saber que um peão branco perdia a vida facilmente
perante uma rainha negra
que a combinatória é uma arte sagrada
que se a dez grãos-de-bico lhe tiro três
estou subtraindo e o resultado é sete.
Regressavas da tua delicadeza
como quem regressa de semear milho e não sabe
que faz um milagre
porque tu não o sabes.
II
Ah partilhar contigo o mesmo sistema linfático
o código que nos frisou o cabelo e decidiu
curvar-nos a coluna como uma cobra
Ah ir correr pelos campos uterinos
carregar –me às costas regressando do rio
dar-me a mão quando choro e a transfusão da paz.
Irmão meu igual o teu coração aos meus gametas
Irmão meu igual a partitura do nosso concerto
para cromossoma e cordas.
Irmão meu igual
meu irmão.
III
Teorema:
Tu és o velho
eu a criança.
Despejas o dia com uma equação
saio ao sol para ver-te
integra como a maçã que desperta segura da sua semente
Eu sou a criança
tu és o velho.
IV
Cúmplice amigo contemplo contigo
o arco da velha das nossas vidas
a álgebra da liberdade
as raízes profundas do polinómio do humor
o amor contido em partes idênticas no ácido nucleico.
Chove suavemente
o corço cruza-se contigo na chã
e reconhece em ti o meu próprio açúcar
o meu próprio nitrogénio
o meu próprio fosfato
o corço cruza-se comigo e parte com uma parte de ti
para o fundo do bosque
onde ainda somos capazes de dormir em posição fetal
entre campânulas e a bosta sagrada do bezerrinho.
E a mesma cicatriz do apêndice adorna a nossa pele
como um relâmpago perfeito de sete pontos de sutura
sobre o céu.
E se acaso não te disse que te quero
escrevo este concerto para cromossoma e cordas
para que se um dia perder a memória e não lembrares
que éramos um sendo dois
maravilha da matemática
enigma da metafísica
evidência da vida.
***
olga novo
*
[vertido do galego por BlogNi]
Mãos
O frio trabalhou nas tuas mãos como um operário inverno após inverno. Acarretou toneladas de graus abaixo de zero à tua sombra. Lavrou a artrose dos teus dedos como um artesão maldito. Meteu-se tão dentro de ti que mal distinguimos a geada de ti. Sopra entre as rosas que os teus dedos plantaram no subsolo do mundo. As tuas mãos de estopa que arrancam ervas daninhas as tuas mãos potentes que acarinham minerais antigos como se fossem o cão da casa, que extraem seixos debaixo do sonho, as tuas mãos que cortam em pedaços castanheiros de madrugada e trazem bezerros ao mundo desde o ano mil. Não se sabe se foram as tuas mãos ou as cicatrizes. Não se sabe se começaste a crescer pelas mãos e depois continuaram os órgãos a completar-te a vida. O teu coração cava com as mãos agarradas à terra. O teu cérebro ama os cereais com tuas mãos de menino pobre. As tuas mãos cheias de calos enxertam macieiras com a minha pele papá. Brilham-me na noite como o cobre. Sabem ir ao monte conduzindo o dia com uma aguilhada. As tuas mãos infantis que quase choravam ao tocar num naco de toucinho rançoso. Aquelas mãos que desconhecem a ortografia passam humildes pela lã duma ovelha sem arrabunhar o dia. Os meus olhos analfabetos observam atónitos as linhas das tuas mãos como carreiros sagrados. As tuas mãos afumadas são de madeira e papas. Põe-se-me o espírito como um bilhó pequeno quando estendes as tuas mãos como um mapa antiquíssimo que desorganiza a geografia humana. As tuas mãos que existem como o logaritmo decifrado pelo teu filho. As tuas mãos que não figuram na História de Heródoto. As tuas mãos instrumentais como um engaço de vento. As tuas mãos bárbaras como um povo limítrofe. As tuas mãos que não rezam mas crêem nas estrelas e no poder de uma nuvem carregada de água. Estão-me florescendo as tuas mãos. Estão nos meus estames. O sol é um heliotrópio que obedece felizmente às tuas mãos. A terra sabe meter-se-te entre as unhas para passar a noite ao quente. Está a minha mente em pleno degelo. A terra das tuas unhas é a única herança que desejo. As tuas mãos papá as tuas mãos anciãs de ouro e de farinha. As tuas mãos nas minhas.
Segredo
Sou dúctil e podem ferir-me com facilidade. Este é o meu segredo mais mal guardado.
Corvo à terra
Quando não te tenho ao lado tremo como uma espiga. Mas faço-me forte e a minha fertilidade canta aos teus tubérculos. Na noite troncal Faz-te de noite, pai. Estás cada vez mais perto de ti: a gravidade pousa como um pássaro no teu ombro. Descendo da tua genética que ordena: Corvo à terra.
Barro
Mantenho os pés num barro arcaico. Eu própria sigo o meu rasto… O vulcão vulnerável o Fragmento lítico Estou-me encadeando com uma flor Estou entrando no pensamento mágico Estou saindo de mim Cantam os meus ossos a canção do anti Édipo Está o barro minando-me Estou chorando plutónio Peço ao demónio que me leve à feliz idade. Pai. Durmo no meu quarto Crescente Atravesso entre troncos este transe
No quietismo total bastam-me os olhos para ver-te Está o canto do colesterol entupindo-me as artérias Estou lavando sozinha os meus glóbulos brancos ai
E aquele teu povo sem terra é agora a minha terra sem povo
Pai.
***
olga novo
*
[vertido do galego por BlogNi]
Aprendi
desde pequena
a separar o carinho da lã
chegado o momento
aprendi
que podia brincar e vê-lo saltar e pastar
e dar-lhe mesmo um biberão feito
com uma velha garrafa de cerveja
mas chegado o momento
sabia
que devia
não saber
não perguntar por que não raiava já
aquele círculo do prado
e só havia ali a sombra do ar na erva…
Mamei a lição
da lei predadora.
Agora o teu sangue canta nos meus ossos.
Aprendi
a não esperar nem pedir mais
que o dia que se dava
e aceitar depois
um sentimento carnívoro
Aprendi a comer-te
e agora o teu sangue canta nos meus ossos.
Aprendi a não chorar sequer
a desaparecer discretamente entre as bonecas
no instante em que sabia
que tinha de fazê-lo.
Aprendi a ver o sangue no avental da mãe
a ver lavar a faca na torneira da cozinha
o cheiro da morte das mãos
do meu progenitor
aprendi a deixar que essas mãos me acariciassem
a saber que também tremem quando te enganam
e te chamam com voz doce
para o pátio
onde ainda ronca
o tractor do nada.
Aprendi a saber que também aprenderam
a não perguntar
a não ouvir os berros da ovelha sozinha como uma máter triste
no fundo do cortelho.
A compreender que o cão lambesse
o pouco que restava de ti no chão
as vísceras
que ainda conservam a memória das cócegas
que te faziam os meus dedos no teu pequeno ventre cordeirinho.
Mas agora o teu sangue canta nos meus ossos
a noite expurga-me
ovídeos que nunca vi
parecem-se com os meus glóbulos
vermelhos
do teu sangue
Pois a mim
ensinaram-me a ser
aprendendo a comer-te.
***
olga novo
*
[vertido do galego por BlogNi]
À memória de Ramona Pardo, da Casa de Casumira
Em algum momento me foram distribuídos os sentidos
para ver eu a manhã que esfria
e come a pintura verde da tua janela
que agora só dá para o nada.
Estava sentada na estação da pobreza
e de repente pensei em ti
a mulher que levo por fora
suporta a duras penas a fera da introspecção
porque passo diante do teu casebre em ruínas
e parece
que ainda espero que a memória extinta duma aldeã
que usou o teu nome
para passar tanta fome
assome a essa janela verde
e me acene com a mão para confirmar que existo.
Velhinha que te vais
tens o dom da extinção
e a chave para decifrar
o alicate que retorce o céu como um ferro
e o faz chover até chorar isso
que faz de nós
uma estrutura acabada
de portas para dentro.
Vais
pelo avesso da miséria
sem roupa nenhuma
falando com doçura a um pote cheio de carvão
e a sombra vai-se-te pelos caminhos
falando sozinha
quanto tens que dizer
***
olga novo
*
[vertido por BlogNi]
teu nome sobe cada manhã
aquece o mundo e põe-se
só no meu coração
sol no meu coração
Juan Gelman
Para Toño
A voz pré-natal lançou-se contra a macieira
e ecoou no valejo e nos meus dentes de leite.
Estatelou-se meu coração contra o milho-miúdo
e ainda te amo exactamente da mesma maneira
substância de mim
meu primo carnal
trinta anos depois.
Não importa que me leves tantos anos
sais e entras pela entrada do pátio como outrora
fazes-me um aceno para me oferecer um figo fazes-me
cócegas
apareces de súbito no dia da cozedura
e a mim incham-se-me as pequenas glândulas do amor
como a massa do molete pequeno
sentas-te à mesa diante da lareira
não importa que me leves tantos anos
pegas-me ao colo
como se te prendesse na palma da mão um meteorito
e faço-me crescer sozinha
sussurro ao meu esqueleto no escuro da noite fecha peço-lhe
leveda leveda:
quando for grande hei-de ser a tua noiva pequena.
Tinha três anos.
inventei a primeira canção para ti.
Ouviram-ma cantar os piscos de peito-ruivo
o incêndio ouviu-ma
cantei-a na raposeira
no campo no corredor da casa na horta
ouviram-ma o escaravelho e a traça
e não tive vergonha.
Não importa que me leves tantos anos
que ames outra
que já não nos vejamos
que não te lembres do que te cantava
pouco importa
ainda te amo exactamente da mesma maneira
meu primo carnal
nas minhas veias vives como um vendaval para sempre
porque não importa
inclusive
que tivesses morrido há anos
e não me desse tempo
a crescer o suficiente.
***
olga novo
*
[vertido por BlogNi]
Meu doce amor dos três anos
vamos brincar aos índios sobre a erva da eira
a falar de Plutão que ainda era um planeta
as minhas pupilas são dois tambores na neve
a tua bola gira no espaço melhor que os meteoritos
passam os teus berlindes rugindo por veias coronárias
passam lágrimas rodando como berlindes azuis
quero ir dormir à toca dos grilos
quero ir contigo
meu amor dos dez anos
sou a menina que assistia ao enterro duma flor na tarde
a que dava o biberão aos cordeirinhos
em garrafas de estrela de Galicia
e aguardava que chegasses
como o melro pousado no último galho do dia
meu doce amor dos quinze anos
viste-me travestida de corvo descalça sobre montes de gelo
viste-me ceder como a madeira de buxo entre as lições de latim
entre equações de resultado incerto
entre raízes quadradas que davam flor no inverno
ainda me parece dormir enlaçada à tua apendicite
como uma magnólia da noite
meu doce amor dos vinte anos
vou pelo teu braço como pela clareira dum bosque
a campânula do tempo explode-me na cara
dou um salto mortal para me agarrar à vida
roubo lume nas hortas no canto de uvas negras
perdão se fiz mal perdão
de baixo das árvores que vão rumo ao subsolo
estou apreendida de memória pela mente de Dioscórides
classificada entre a lavanda e as plantas venenosas
se me vês fico cega
se me falas faz-se-me um eco na garganta
deito-me na tua cicatriz como uma gaze
tudo passa
meu doce amor dos trinta anos
vou pelo teu braço como por um braço de mar
à aventura
a minha vida é fruto do acaso
entre ruas de limoeiros e canelhas de chuva
entre megálitos absortos e lendas milenárias
sinto que me cantam em babilónia e bretanha
que a poldra do apocalipse me está esperando à porta
meu doce amor da idade do ferro
entre lanças e sentimentos campaniformes
o meu eu vai pelo teu braço como por um traço
inscrito numa tégula de bons augúrios
o meu amor vai pela tua mão
como o cão que é
meu doce amor dos trinta mil anos
o ar arranha
ulula nesta fissura
sinto que me cantam em babilónia e bretanha
que a poldra do apocalipse me está esperando à porta…
enquanto
o meu eu atónito
sobre um banco de peixes sentado
sente ainda talvez a candura
do doce amor dos três anos.
***
olga novo
*
[vertido por BlogNi, Poma Fidiró e Dria]
Falta-me ferro. Sobra-me música e potássio.
Ninguém me entende visto-me com a saia da montanha
choro por qualquer coisa
espero uma carícia
como um milagre de pão de ouro e vitaminas.
Como carne de égua. Escuto passos nas minhas veias
e invade-me a alegria de um novo amor como um exército bárbaro.
Esta sou eu.
Metade árvore
metade escada de caracol
Metade tigela
metade beco duma vida à beira do Adriático
Metade abóbada metade sombra
metade contemplação metade auspício
Metade mofo metade pureza
Metade fonte metade varanda
metade horizonte metade estrutura mecânica
Metade flor de cerejeira
memória cortada pela metade
metade monte metade eu
metade madona metade neve.
A mim ninguém me entende.
Deixo tirar – me sangue e maçãs
minha tormenta
deixo que me auscultem vozes do outro mundo
dirijo a minha tensão como se fosse uma orquestra
tiram água de mim como de um poço cardíaco
às vezes
escuramente
inclusive sei o que digo.
Dizem que me falta ferro a mim
mas esta garganta minha
é um metal de transição entre a palavra e o peito.
E em contacto com a ternura posso adquirir um leve timbre oxidado.
No meu sonho ando pastando com as vacas no meio dum campo magnético.
Na minha vida real
sou a filha pequena dum pastor do fim do mundo.
Metade abóbada metade sombra
metade contemplação metade auspício
Metade mofo metade pureza
Metade fonte metade varanda
metade horizonte metade estrutura mecânica.
Metade flor de cerejeira
memória cortada pela metade
metade monte metade eu
metade madona metade neve.
Tiram-me sangue
Tiram-me
a mim
ninguém me entende.
***
olga novo
*
[virado do galego por BlogNi]
Necessitaria que o corpo me seguisse
e vivesse três vezes sendo eu mesma
Que amasse com ardor as coisas que adoro:
o pó sobre um velho móvel
as tuas olheiras
de rerum natura de Aristóteles
a espiga que entrega a vida nas mãos do meu pai como no Gólgota as tuas olheiras
o pelo negro e liso do espírito da cadela Perla
a tua mão no meu ventre
a comunicação com o mais além deste poema a matéria
o último olhar de um ruivo
a massa do pão quando leveda e neva
sobre a densidade e a forma das tuas memórias
um tango
um telescópio para olhar-me ao espelho
as amoras os ciganos as mãos da minha mãe a agulha da modista
um velho combatente doente que perdeu a guerra pensando que a ganhara
aquele que se espanta de ver o amanhecer
e é tocado pela sua guitarra como por um anjo
uma mulher que caminha em direcção a si mesma
e me leva pela mão
ao seu próprio destino
uma goma de três pesetas
o estômago duma vaca e a reverberação do trevo
o cérebro do meu irmão
que brilha como uma flor entre os números
o úmero do poeta amado
o meu sangue vivo o meu canibalismo
a gota que encheu o meu copo
e tu
contando pelos dedos
a minha vida três vezes
três
a minha vida.
***
olga novo
*
[virado por BlogNi]
Em miúda
quando me perguntavam de que tinha medo
eu sempre respondia:
de parir e do lobo
O lobo veio uma vez
à noite
voltávamos para casa atravessando o monte
o meu pai apontou-o com o dedo ia só como perdido
esquecido o instinto algures
retrocedida a fome a outra época
nem sequer nos olhou
absorto no seu sangue na sua cavilação
talvez
a noite evidenciava-lhe em seu pinar
a gangrena da sua espécie
Lembro bem as suas patas espartilhando a geada
o silêncio tenso com que a evolução assistiu a tal cena
a tosca indiferença da coruja do granito ou da massa do pão
que continuou a levedar as suas moléculas de farinha
atreitos de tal modo à extinção que não repararam um hiato…
Desde aí o meu medo é um guru que uiva na noite
a ti e a ti e a ti
embora me oiçam agora embora me vejam a falar
pondo a língua no ponto exacto a que obriga a mãe fonética
não sou eu
esta voz
que grunhe
garanto que não sou
eu
este ruído côncavo que as vogais fazem com o sangue
essa terebintina negra em que se me tornou o cuspo ao engolir
maldita seja eu mesma
e a raça que me ensinou a noite como se fosse uma abreviatura de deus
Agora já sei
de certeza
que as tripas do último lobo me rondam a linguagem
e se algum dia o monte me atravessar para voltar a sua casa
apontarei com o dedo aqui dentro
onde a voz de mim se apossa como de um réu
Que direi agora
se me perguntarem
de que tenho medo?
***
olga novo
*
[trad: alberto augusto miranda]
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