Cansa-me ser quem serei
porque emtudo esse outro
se parece com o que sou.
Cansa-me o adeus de quem nasce.
E a viagem, à nascença, morre de fadiga.
Só a tua lava me lava.
Resto eu em ti
terra ardendo,
chão de água e fogo
Abraça-me.
Abrasa-me.
***
mia couto
*
No teu rosto
competem mil madrugadas
Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas
A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca de paixão
mordendo o meu sossego
***
mia couto
*
Aguardo-te
como o barro espera a mão.
Com a mesma saudade
que a semente sente do chão.
O tempo perde a fonte
e a manhã
nasce tão exausta
que a luz chega apenas pela noite.
O relógio tomba
e o ponteiro se crava
no centro do meu peito.
Fui morto pelo tempo
no dia em que te esperei.
***
mia couto
beira, 1955
***************
nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios
a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
***
mia couto
beira, 1955
*******************
Seria um pássaro
No sono das asas
ondulava
toda a solidão do céu
Terrestre,
só a fugitiva sombra
Paisagem nenhuma
lhe dava abrigo
Pousado,
o corpo
de si mesmo exilava
Nos ensinava
a deslumbrância da viagem
a nós que só na morte
olharemos os céus de frente
***
mia couto
(beira, 1955)
****************
Todas as vidas gastei
para morrer contigo.
E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.
Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só meus dedos murcharam, decepados.
Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só meus olhos
se desfizeram, redondas cinzas.
Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?
Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.
Todas as mortes gastei
para viver contigo.
***
Mia Couto
***********************
O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na fundo transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
S chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos
***
Mia Couto
***********************
Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida
Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
in Raiz de Orvalho (1999)
***
Mia Couto (1955)
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