Qual a diferença
Entre cor de velho e cor de adolescente?
Escreveu-me a divindade certo dia
E eu, que nem fósforos colecionava,
Mas tinha ainda a tonalidade juvenil,
Recortei a divina rubrica
Destruindo assim o seu valor e o da missiva.
Era uma carta a Mário Cesariny.
Ali nos banhávamos, em letras de luz narcísica;
O ego resplandecente e muito maior que rã
De fábula.
Os girassóis debruçados das orelhas de Van Gogh
Estremeciam como lustres incendiados.
E agora vamos cor-de-burro-quando-foge
Cor-de-noite-quando-chega
Mal acompanhada,
Vamos indo cada vez mais para norte
Para as pradarias de neve
Pintar a merda da morte.
***
maria estela guedes
*
Regressas... é a hora, agora.
De um ofício de corpo presente?
Por te amar in absentia
O peito me cobriram de sangue
Os sagitários romanos.
Sebastião, meu Sebastião!
Nas areias deste areal contas
Pelo rosário que te rezo
Com Deus à escutas nas ondas
Lendas de monstros meninos...
Cruel o nosso fado! A tua virgindade
Coroa o meu pénis com espinhos.
Porque eu sou o grande mar Atlântico
Desejo que por vagas nos conduz
Aos cimos do amor que te tenho...
Eu sou o que às Portas de Hércules se tetém
O nome saboreando à oliva e ao figo seco
Para te amar aqui, além de Além.
***
maria estela guedes
*
Sento-me na varanda
quando são de seda
as tardes de Verão.
A cadeira balouçante na brisa,
perdidos os olhos, a memória e os sentidos
no perfil azul-sombrio da Serra do Marão.
Contudo,
terra minha mais do que Maranus
e Britiande, em Lamego,
é Gaia, a biosfera,
lápis-lazúli de ânsia
em que vogam, gigantes,
as Victoria regia das estrelas.
E mais terra ainda do que essas
é a secura desta falta de sementes
amara duna
o nada florir a nascente
além da vinha e dos pomares
como reconhecida cultura.
Vai morrendo lentamente a esperança
e sei que somos nós o parasita
terra que à terra volveremos
sem o bombom de um novo ab initio.
Numa qualquer tarde sem ar limpo
nem límpida transfusão da luz
pela vidraça de fumo atmosfera
mergulharemos no nada como o precipício
em que se aterra sob o seu próprio peso
o céu outrora anil-olímpico
agora da saudade o xaile verde.
Do pó ao pó – eis a Terra.
***
maria estela guedes
*
Todo o meu apelo vai nas ondas
E pelas ondas vem a tua voz chamar-me
À praia do Tamariz
Se quebram leves rendas à roda do pescoço
Beijam-te o rosto de flor de lis.
É tão grande o desejo como o mar.
O Atlântico atrai para o deserto
Onde sem lápide hás de jazer reinando
Per saecula saeculorum
Sem Amen na prece a rematar.
Santo, eu, per saecula saeculorum
Ficarei rezando. Amo-te, Sebastião,
Ó flor imarcescível!
Meu cavaleiro da noite, meu lençol de esperma
Coalhado, em que estrelas choram por seres tão casto.
Olha que mais rebelde à morte, mais que tu, rei herói,
Sou eu, Sebastião, que não fui rei nem casto
Mas que sou soldado, gay e corajoso mártir.
***
maria estela guedes
(britiande - lamego, 1947)
*******************************
A vida, esse livro do ser
Lê-se em silêncio.
Mestre, oficia o rito
Que eu apenas respondo ao salmo,
E no resto
Nem respiro.
O silêncio é uma arma de três gumes
Que usamos diariamente
Para calar amarguras
Ou saltando como pumas:
Cala-te! Porque não te calas?
A vida, esse livro do ser
Lê-se em silêncio.
E a outros, se falam, um punhal
Corta sem hesitar a garganta:
Ou silêncio ou morte!
Não o sabias? Então de que te espantas?
Nada incomoda mais que as ciciantes
Preces, as dos que querem ser lidos
Como revistas de moda,
As dos que sabem tudo, tudo censuram,
A todos desautorizam, em altos gritos de arara.
Cala-te! Porque não te calas, charlatão?
Silêncio, que estou a cantar o fado…
Muito barulho fazeis por coisa de nada
E nada em boa justiça se aplica
Aos que bem mereciam a cadeia.
Nem é a autoridade dos que governam impérios
Com a pressão das armas e do dinheiro
A que mais nos ofende com censura
Sim o seu miniatural espelho
De quem nenhuma obra ousou,
Além de poluir o silêncio com mentira.
À luz da nossa vida pessoal, quem mais nos cala
É quem está mais próximo
Mas esse, porque proclama sem cadeira,
Feitos nem actos,
Por excessiva frioleira, mandemo-lo calar
Pois pouco existe, é só fala-barato.
Abençoados os que se calam
A ouvir.
É preciso sabedoria para reconhecer
Que ignoramos
E que outros no seu dizer
Revelam alguma mestria.
Falem-me em silêncio, na língua da erva
Ou na mais cantarolante dos regatos
E das aves que fazem estrugir as folhas secas
Quando as fêmeas se enamoram
Ao ver as danças dos machos.
A vida, esse livro tremendo,
Representa-se devagar,
Em cenário nocturno
Cortado pelo brilho da lua e pelo
Visionar da coruja.
Mais nada é preciso para tocar o astro
Excepto silêncio e cordura.
***
Maria Estela Guedes
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As dores da minha amiga sabem a loas:
Em torno de Saturno - o velho deus que se agarra
Ao bordão sobraçando um vaso de ouro - Giram loucas.
E ela, feita elegia ardente,
crepita e em faúlhas de yellow, green, blue,
Red, white, cyan & magenta. A seguir, morre.
E logo brota, crioula.
***
Maria Estela Guedes
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O bom amigo das cores
Chora pérola e carmim. Não conhece a laurissilva
Nada sabe do alecrim. Ideou uma catedral
A deuses policromados
Em custódias de âmbar mole
& graais de azul-sulfato. Nada em chávenas
Turquesa com peixes azul-de-prússia;
O corpo ondulante e opala
Desmaia em brancuras de marquesa.
Cobre a cabeça aos deuses
Com elmo cúpreo-acintoso. Emite azul, amarelo
& preto - ais da calda bordalesa.
O meu grande amor opaco
Chora em palco de corais
& eu limpo-lhe a cara com os dedos
Vermelhos de cochinilha. Deus do azul, do
Amarelo & da juvenil verdura
Com que tantas mantas de pintam,
Ele é de+cor por ser gramado.
***
Maria Estela Guedes
Britiande (Lamego) - 1947
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