Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.
O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.
Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.
***
manuel antónio pina
*
Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.
É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.
Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?
***
manuel antónio pina
1943 -2012
*
daqui: webcedário
Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.
O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.
Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.
Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.
***
manuel antónio pina
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
***
Manuel António Pina
******************************
... knowledge is but oblivion...
Não haveria roubo, e há só o roubo,
há só a música, é lá quew tudo ondeia...
Já li tudo, já fiz tudo (quem?).
Regresso, pois, à minha solidão.
Ouvir-me-eis até ao infinito.
Nós só falamos para nós próprios
e o tempo não existe, nem os outros.
Porque está tudo paradoe aquele que escreve
é também eternamente escrito.
O seu passado é o Futuro de tudo,
ele a sombra de tudo o que há-de vir.
***
Manuel António Pina
*******************************
Regreso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
nãp é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no
amor como em casa.
***
Manuel António Pina (1943)
Agora é diferente Tenho o teu nome o teu cheiro A minha roupa de repente ficou com o teu cheiro Agora estamos misturados No meio de nós já não cabe o amor Já não arranjamos lugar para o amor Já não arranjamos vagar para o amor agora isto vai devagar isto agora demora *** Manuel António Pina (1943) Sabugal (Portugal) |
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