O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça,
meu medo da morte.
(João Cabral de Melo Neto)
Vestiram-se para a foto. Ele, distinto em um paletó preto gravata borboleta lenço na lapela e os óculos, aros fininhos. Didi em um vestido com botõezinhos e plissê, brincos em forma de coração vermelho com pedrinhas ao redor um trancelim de ouro com medalhinha e cabelos curtos muito curtos, repartidos à la garçonne. Olham para o infinito.
Um dia ele morreu.
Didi vestiu-o pela derradeira vez igual à foto, cobriu o caixão com cravos brancos depois vestiu-se de preto.
Quis enlouquecer mas na semana seguinte ele voltou, contou tudo.
Não se habituara muito com aquela vida de morte.
— Que brincadeira é essa?
E estava ele de volta. Viviam assim em núpcias.
Às vezes ele não vinha. Ela caía numa tristeza de dar dó. Dia seguinte ele surgia novamente em frente ao portão, corado e bem disposto. Didi perdeu a conta de quantas vezes ele morreu de quantas viveu talvez a vida toda.
O tempo passou. Chegou o dia em que ela Didi, também resolveu que ia morrer. Elegante, despediu-se de todos, deitou no caixão.
Estava linda vestido branco, pulseira dourada e um véu bordado com minúsculas borboletas rosadas cobrindo o corpo antigo.
As matas se incendiaram fogo fátuo.
As folhas do caderno de anotações voaram atravessadas pelo calor do vento volando as cortinas de seda.
***
jussara salazar
*
rio fênix por que escreveríamos river phoenix? talvez para que em sua língua você ressurja das cinzas menino-rio de um rio tão distante que se perdeu da vista se perdeu da mãe no imenso abraço-oceano a mãe-baleia com seu urro urrando bramindo em céu noturno, insano bramindo buscando o rio-mar que o rio de tão solar é rio escuro e se adormece em seus braços então por que não chamá-lo? por que não acordá-lo para que venha e nossa língua ressurja das cinzas menino de olhos cor-do-rio menino bonito sob o sol vou chamá-lo de cristalino assim para que ria pássaro sem mágoas que a palavra escrita aqui nessa língua é river e se espalha quando voam suas asas sobre a minha casa e menino você rindo azula os seus cinzas sobre o rio como a fênix flutuando sobre a água,
***
jussara salazar
*
humo y uma
filosofia de dedos acaricia o tigre
silhueta
onde o desenho
sobre a porta
aquece a lâmpada
um círio
entre imagens
uns pequenos encantos
na geometria cálida
desmedida fronteira de um verão
olhos cerrados
quase um espasmo
uma flutuação tênue e cadenciosa
enquanto mergulha
e o verde
são pequeninos pontos
ao longe um pedaço
da desgarrada hora
inútil
minuciosa
e a memória da chuva
às vezes feminina
maná que se oculta
para logo em seguida
emergir superfície
em cifras no anfíbio tear
redondilha
augúrio lampadário
spray
ou cenas do teatro nô
escutam se a si
miram mesmo seus sonhos
quase um mapa
nas delicadezas
e uma ave desavisada arrisca um pouso
perfuma de continuidade
o beiral ovalado
e as lises escamas nos azuis
de uma fotografia impensável
sílabas
na fábula
escrita antes luminosidade
ou fosse a casca
áspera
de um peixe.
***
jussara salazar
*
Fólios sonoros rasgados
ao vento girando os dias
assombrando a terra
(pianoforte) — árvore das mil estrelas qual livro aberto
e tudo e todas as páginas
ao vento também
dos poemas despedaçados
esfera marítima rumorejante
esfomeada
ondulando as roupas coloridas
de um varal aéreo
rodopiantes silfos
sufis, encantos ou Mary Poppins
com su umbrella bianca
— serei as duas almas de Hurricane
subterrâneo vício de Ulisses
no velo do abraço a tarde fria
espumando a boca
do cão com asas
do cão sem asas
guiando meu cego corpo
mar do olho pedregoso atirado à fuligem
sopro preso no sopro
na voragem
e de novo o corpo
em grifos
açoites
entrecortando cidades girando
aqui
meu pequeno vendaval
sobre
o tapete chinês
***
jussara salazar
*
antes tarde
que nunca
entulho
antes música
e estilhaço
no ardor
aquático
deste ácido entre
a orla
sempre um cáustico
iça
funde o corpo
um tímpano
ao pólen
quem beira o lago
e o astro
rapta
o concêntrico eco
e antes refaz-se
do que nunca
hálito
enquanto ara
um palavreado
e apalpa
a teia
o átimo
ante
o acústico
caleidoscópio
***
jussara salazar
pernambuco, 1959
*
um vento forte zunia imenso o leito vazio até a lua minguava e não havia estrelas eu tive pena da noite negro manto de graúna os piados da coruja nuvens densas carrancudas intranqüilo céu de piche uma sirene tocava os mendigos sem abrigo os bêbados a madrugada a rouquidão os gemidos a noite toda tremia nem ela nem eu dormimos *** Jussara Salazar (1959) Pernambuco (Brasil
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