A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
***
fernando assis pacheco
coimbra, 1937 - 1995
*
Não sei
se o que chamam amor é este apaziguamento.
Não sei se comias fogo. Tuas abelhas
voam agora em círculos tranquilos.
Mães serenam seus filhos no ventre,
não sei se o que enfim chamam
amor é esta areia fina.
Agora estamos um dentro do outro,
fazemos longas visitas deslumbradas
porque <o nosso prazer lembra um rio vagaroso
no meio de juncos ao cair da tarde>.
As palavras tornam-se esquivas. Com o silêncio
falaríamos melhor de tudo isto.
Não sei se o que chamam amor
é a cama desfeita o sol fugindo,
uma vontade louca de beber
a grandes goles a noite entorpecente.
Com o silêncio, o silêncio sem nome:
morrermos a meio do filme
simples, calada, dedicadamente.
Eras tu, amor? - Era eu, era eu!
Um barco junto à margem. E cegonhas.
***
Fernando Assis Pacheco
**************************************
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.
Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.
Lomgas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.
Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?
***
Fernando Assis Pacheco
*****************************************
Passaram anos e anos
sobre esta roda da vida,
farinha que foi moída,
vai-se a ver, são desenganos
Atou-me a sorte este nó,
cobriu-me com estes panos.
Ao peso dos meus enganos
sai a farinha da mó.
Na palma da mão estendida
leio um caminho de pó
lembranças do homem só
São as andanças da vida
Foram dias, foram anos,
foi uma sorte moída,
vida que tenho vivida,
(vai-se a ver são desenganos)
Foram dias, foram anos,
for a sorte apodrecida.
Dentro da roda da vida
sinto roer os fusanos
Lembranças da minha vida
perdem-se em nuvens de pó.
Bem me chamam Pedro Só,
(nome de roda partida)
***
Fernando Assis Pacheco (1937 - 1995)
Coimbra (Portugal)
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