está orvalhada a rotunda memória como o leito
os corpos mudaram na desfolhada
traficaram-se na sociedade
a casa derrocada areja-se de primavera
e o olho cúmplice do sol atravessa o tempo
o pensamento revoluciona
quando só o mesmo se pode manifestar
o azul continua leve
os glóbulos vermelhos
carecem de furtos silvestres
o pé escorrega lentamente pela perna
que desliza para dentro do poço
o ouvido segue o voo do foguete
e estoura as mãos de saudade
despeja-se o rubor das pétalas no peito
e sai-se de bicicleta
circolando em linha recta
o mundo é um balão
marioneta colorida
na mão esquerda de um feto
***
fátima vale
*
andam agitadas as serpes
enroladas aos meus ossos
fêmeas prestes a explodir
com os gritos populares
é fálica esta revolta
que se ergue
logo incendiarão
o pútrido trono
e ao lento rolar das cabeças
soltar-se-á a dança da fertilidade
a feminilidade de todos os seres
porá em liberdade os beijos exilados
o silêncio osculado
será o manifesto
da queda patriarcal
***
fátima vale
*
nesta sensação de queda em que o meu corpo mutável se encontra
existe uma suspensão de tempo
dentro da cabeça falam-me várias línguas
raramente as entendo por fora
faço vida num rés do chão por conta d'outrém
não conheço nenhum dos fantasmas que dançam à minha volta
nem creio que eles me percebam pois estou sempre a surgir e moro num silêncio galopante
os sonhos fugiram-me por cima do telhado
deixaram um rasto de gosma brilhante sobre as ondas de barro
e dentro dos livros
das chávenas
das gavetas mal fechadas
aparecem-me nereidas de várias cores
que dobram os panos amontoados ao lado da cama
dançando
fico possuída de desejo ao vê-las tão deslumbrantes dentro dos meus olhos
que me envolvo a remendar peúgas inteiras para os pés do horizonte
***
fátima vale
*
abro os braços para as cinzentas alamedas do cárcere
e como escrava vou medindo o vacilante silêncio das flâmulas
dentro do ventre da voz contida sento-me enquanto descanso
com o mono mais barato da família sagrada entre os pés
à passagem da lâmina pela superfície do abandono
escorrem fios do meu sangue sobre as costas do dogma
eis a maravilha reposta ao volante dos lábios
circulam-me pelas artérias todos os milagres do universo
***
fátima vale
*
"é a morte que faz falta à vida"
húmus, raúl brandão
percorre o corpo que se alonga dourado sobre a cor
púrpura
e resvala no abc de um ismo entontecido
ciclone infante
vadio
um sopro hidrogenado de um não metal amarelo
atravessa a fenda das sinapses
desdobra a brancura no papel e dá conservação ao
vinho
afunda-se na terra como toupeira vulcânica
ave tenra em fotossíntese
desregula o passo que desidrata nas salinas
e a curva da casa multiplica-se
no tráfego aéreo arbitrário
no grito aerofágico
o corte das artérias debrua o desespero
oscularia a vista de uma nova paisagem
nua
desavinda
sem memória
imoral
órfica
as mãos sonham a lira de apolo
o cérbero treme de insónia
sobre um telhado de lágrimas de ferro
***
fátima vale
*
« e agora corroborando algo embrionário de que se falou
e se volta a falar com outra força »
melusine de mattos
Beija-me a alvorada na face do riso eutanásico
favos de mel
da lua derrama-se leite sobre o meu seio novo
planta que germina da boca silvestre
chama acesa
o mundo surge no despertar das trevas
vida nova se esculpe dentro de mim
enquanto as aves aquecem o repouso em que se recriam
pares de mãos erguidas intercedem
à infinitude do universo
incontáveis trabalham a talha única
que desperta
uma floresta longínqua no nevoeiro invernoso
flutua na abstracção do olhar
os espíritos dançantes dispersam-se dela
aproximam-se da água doce
que yonifica o vale
nos fluídos da geografia antíqua
surgem na clarificação dos sentidos
véus do paraíso são rasgados pela loucura
força dolorosa
mensageira perdida
de palavra façoila
gritada pela máscara trágica
no teatro secreto
com nó apertado está o enforcado tarológico
sobra tudo ao começo da vida
a floresta longínqua é agora derrubada
pelos madeireiros em acção aproximada
morte enxuta da criança
que nunca será notícia na dispersão da terra
sacodem-se roupas de oração no varal
entre dois picos que dançam ao vento
polidos pelos espíritos negros
desenhados pelo sol
acorda a natureza com o sopro morno
que sobe ao alto
tocarão os tambores da noite
a marcha da nova esfera
a diáspora da necrosfera
camadas de átomos desconhecidos
formam-se sobre mim
adormecerei ao centro da colmeia
para ser sonhada pela abelha mestra
que me trará o pólen
do nome
geleia real do porvir
forma-se finalmente
o princípio do 'spabilanto pelo coro dourado
do manto celeste
infinita nebulosa
do planeta inviolável
adonde ls caçadores ténen penas
al redror de la cloaca
i las pitas
spingardas de caramelo
pun!
***
fátima vale
*
estava o corpo alvo e nu
no cimo da mais alta montanha
onde se via azul turquesa
a confluência de dois rios
o vento quente fecundou-o
de mantras budistas
único som da natureza naquele instante
a atmosfera foi a dança
de infinitas pétalas vermelhas
sangue polinizado em voo aleatório
a cinza vivificada
espaço do amor absoluto
voltaria ao ventre da terra
germinar para o centro
até à libertação prateada do peixe
***
fátima vale
*
tens danças adiadas no salão de uma estrela
tens o sorriso cativo e torturado - na masmorra da ausência
não tentes a fuga - pois a parede sangra - e a janela é um
grito onde não cabes
incendiarás as vísceras se necessário - até o fogo sair pelo
olhar
a grade que te encerra - tornar-se-á líquida
para a travessia das horas - portal da vida - onde a alegria
se não penhora
morres tanto na margem do corpo que desmaias - subiu
tanto a maré dos teus olhos
tens nas mãos o amor absoluto - escolhe o caminho
pois o tempo está de partida - o eco é surdo e esconde-se
no horizonte
o esqueleto que abandonas à superfície - entrega-se ao vento que se prega vocal
o espírito vai no azimute das violetas - do riso multicolor
saudade do futuro
tens danças adiadas no salão de uma estrela
seguirás o rasto das flores de sal
***
fátima vale
*
no colo imaginário funde-se o tempo e o sonho
porque rasgas a fenda do espaço sináptico
pai
o antiquíssimo impulso dilacera
virás partilhar a espuma do mar na palavra inaudível dos olhos
pergunto
virás
as mãos cheias de mundo
soltarão juntas a melíflua dádiva
dá-me esse dia que eu entrego-te o brilho da criação
que sono dormes agora na inerte inquietude do corpo
renasces alado na curva do sopro
não existem pegadas no peito celeste das aves
todos nascem quando acordam
mestres de si
a alegria é a empresa que temos adiada
desprivatiza o silêncio e o pelourinho do sangue
a madrugada acende o canto de fogo
rego a horta por ti
crescem teus
inéditos risos nas folhas
que todos os dias se alongam verdejantes
guarda o sol dentro de ti
ansiolítica a noite quebrará o espelho
o lago renascentista fluirá suspenso
salgado
merífico na esfera azul
vou ajaezar o caracol
saio de coração às costas
já te abraço principalmente
fátima vale
*
queria-te como aos frutos
dando cor à casa
e comer-te no momento da fome
queria-te lobo
e eu loba no cimo do monte
livres como a lua
o uivo ejacularia estrelas
queria-te agora
montanha de desejo
raposa poema
um animal nunca está só
***
fátima vale
oshakati (namíbia), 1975
*
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas