Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
***
eugénio de andrade
*
O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
***
eugénio andrade
(póvoa de atalaia, 1923 - 2005)
************************
Trazia consigo a graça
das fontes, quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
Andava como quem passa,
sem ter medo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ela sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.
***
eugénio de andrade
(póvoa de atalaia, 1923 - 2005)
*****************************
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito easo, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror,
são a grande razão, a única razão.
***
Eugénio de Andrade
*******************************
Borboleta, borboleta,
flor do ar,
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?
vou ao rio, e tenho pressa, não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá,
que já deve estar florido.
Leonoreta, Leonoreta,
que me não levas contigo.
***
Eugénio de Andrade
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[selecção: sophia de mello breyner andresen]
Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?
Vou àquela serra
buscar uma ovelha.
Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?
Não tenho ninguém
que me queira bem.
Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
in Primeiro Livro De Poesia
selecção de Sophia de Mello Breiner Andresen
ilustrações de Júlio Resende
***
Eugénio de Andrade (1923 - 2005)
Fundão - Portugal
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."
Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...
Boa noite. Eu vou com as aves!
in Antologia Breve
***
Eugénio de Andrade (1923 - 2005)
Fundão - Portugal
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade
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