Ignorar não é esquecer, esquecimento não é ignorância, como cheiro não é fragrância.
Massa frutada de ar-livre é o corpo almado daquel’além arvoredo a prazo da eternidade.
Sem psiquiatrias vãs, faço (assumo) a despesa do instante, que ou é agora ou vai-t’imbora.
A golpe seco, recebo separação e devolução: faço por entender notarialmente as doações, as coacções, os abusos, os azares da fortuna.
E então?
Cai a pique a época ciclística, sabemos que o calor serôdio apodrecerá de gelo à primeira oportunidade – mas por enquanto não.
Inversa piscina que às aves torna peixes, o céu é grande como uma popularidade inesperada.
Retiros estivais zonam ilhéus familiares.
Embatem-se percursos, nacionalizam-se cabeças, mudam-se diversões, concorrem-se laivos pérfidos, procuram-se corpos desavindos de outros.
A edição da tarde transporta pacotes de chá, açúcar amarelo, presilhas de pantalonas senhoris.
É o que faz refrescar o anis.
***
daniel abrunheiro
*
1
Está uma pessoa feminina deitada na cama. Só é possível ver o lado dela da cama. Não sabemos se há outro lado. Não sabemos se ela ocupa sozinha a cama. A luz varia entre o azul e a prata. A cabeça sangra uma hemorragia de cabelo. O rosto é bonito. A luz é lateral. São três horas da manhã.
2
Não sabemos se há outras pessoas em casa. Sabemos que ela dorme. Não sabemos se dorme só. Sabemos, só, que dorme. Agora, ela acorda de repente por causa dos ramos na vidraça.
3
Há uma árvore do exacto tamanho da casa junto à casa. A casa é grande. A árvore também é grande. Foram semeadas no mesmo dia – a árvore e a casa.
4
Às vezes, o depois vem primeiro do que o antes. Por isso vai e volta o Tempo. Por isso ficam árvores e casas. A diferença é o nascimento mortal. A rapariga nasceu naquela casa. E naquela casa dorme. Dorme – até que acorda com o raspar dos ramos na vidraça.
5
“Há quanto tempo nasceste?” – ouvimos nós uma voz dizendo. E outra voz – “E há quanto tempo morreste?” A rapariga acorda – abre os olhos no azul, abre os olhos na prata.
6
Devem ter soltado o cão, alguém deve ter soltado o cão. A voz dele picota a madrugada de roucas reticências. O vento faz “vim, vão, vêm…” Ela não vai. A rapariga acorda e fica.
7
São os ramos na vidraça. A casa é enorme. O vento é enorme também. Também a casa. A rapariga dormia. Agora, já não. Os ramos raspam. O cão existe. Os olhos do cão fosforescem como os olhos da rapariga. Os mundos cruzam-se como se o cio fosse a única razão.
8
Uma árvore é sempre solteira. Os arbustos são promíscuos, sim, mas as árvores não. Que diferença faria, ao mundo, se uma árvore recusasse a ordem natural do mundo?
9
A casa é grande, a vida não é grande. Há maneiras de falar. Nós sabemos que estar acordado é outra coisa. A rapariga acordou por causa dos ramos na vidraça. É outra coisa.
10
Lá fora, a manhã nasce como se fosse a primeira vez. Um calhau rola nos espaços. A rapariga aproveita para se levantar. Abre a janela. Não há nada a recear. Está ali a árvore, está ali o dia, está ali o cão. Olha, diz adeus ao cão.
***
daniel abrunheiro
coimbra, 1964
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