um narrador sofre e considera-se anti-ético por sofrer. os dilemas se propagam na penumbra que o cerca, desde que se descobriu apaixonado por uma das personagens (justo aquela que termina abraçada ao herói!) está mudo. como iniciar a história e mortificar seu coração? esse que ele segura entre as mãos enquanto anda de um lado para o outro, olhando para o chão como se a solução pudesse, a qualquer momento, aparecer escrita num pedaço de papel saído das frestas do palco! silêncio
os passos cessam, as cortinas se movem, surge um joker translúcido, aquele, aquilo vai de encontro ao aflito, pára acanhadamente e com a voz estridente, que torna estranha a língua semelhante, começa o discurso: - caro narrador, dê-me alguns minutos do seu precioso tempo agônico, venho de um lugar cujo solo as solas dos seus sapatos desconhecem, não puxe pela memória as lembranças, não existem, deste lugar, registros. venho do incalculável para dizer que tenho nesta caixa de pensamentos o fim das suas dores
(ao pronunciar essas palavras o joker, com o braço direito, envolve os ombros do narrador e o conduz pelo palco os riscos de sangue que vazam do coração entre as mãos do conduzido)
imaginemos um bosque no qual só eu e você, ninguém mais. conversemos, pois, como antigos amigos separados pelo tempo e unidos pelo mesmo, agora, confidentes sem julgamento, sinta, meu amigo, a liberdade que diz para esquecermos, nossos nomes mergulharemos no rio Letes, as águas cristalinas do alívio.
***
camila vardarac
*
cotovelos sobre cacos de vidro retém as palavras enquanto o sangue foge, desenho as letras do seu nome dentro do coração transformado em origami de caveira. sim, a lucidez é tão impossível quanto o silêncio e paixão sem êxtase ou morte é como estar entre os vivos num enterro: a neutralidade - existe quando ressus-citas o poeta morto para assassinar o que em ti nasce sem permissão
***
camila vardarac
*
eu não acredito na bondade dos anjos
todos parecem bebês de rosemary
o colorido dos vitrais não ameniza
a melancolia assustadora estampada em seus semblantes
no centro da casa
sagrada
o homem abre o livro
sagrado
e recita para si palavras pesadas
como o som de mil crucifixos arremessados ao chão
e eu penso nos pecados mais bizarros
que rondam o confessionário de vozes alteradas
depois aliviadas,
por depositarem nos ombros do representante do pai
a culpa dos seus atos impensados ou dolorosamente calculados
penso nos joelhos esfolados
por baixo das calças poídas dos fiéis fervorosos
que não sentem o gosto de ferro na boca
nem o gosto do sangue no cálice
e os sinos badalam doze vezes pausadas
ensurdecendo meus sonhos sacros
fazendo-me abrir todas as noites os olhos
quando deveriam estar fechados.
***
camila vardarac
*
o homem
nu como quem entra no banho
nu como quem chora
mira os olhos do reflexo no espelho
até que se embacem as retinas
máscaras e alter egos passam
como num filme super 8 desfocado
projetado em vidro
rachado nas quatro pontas
a realidade entra pelo ralo do banheiro
escorre pelos azulejos suados
enquanto as mãos desenham cenários
de paraíso e pandora
com sabonete e carvão
a água contaminada da torneira
cai como cascatas pelas frestas
as poças no chão
seguem a direção do rádio bem posicionado
a voz de nick cave ecoa gravemente:
` the good son
the good son
the good son `
***
camila vardarac
*
na casa ao lado
espiritos inquietos sobem e descem escadas
como se o melhor a fazer fosse
subir e descer escadas
são 3:47
o sono das 3:00 já foi perdido
agora no ponto dos conscientes
espero a dormência dos sentidos
calem esses passos
como calaram as almas dentro da casa escura
amarrem esses pés
como fizeram com as vozes na gaiola da mordaça
tirem seus valiuns das gavetas
e entrem nas sombras dos cobertores
morfeu, acuda esta gente!
dardos com soníferos no centro das testas
areia movediça ao redor das camas
e uma injeção de sonhos mudos na espiral dos meus ouvidos.
***
camila vardarac
*
Quando teu Ginsberg de bolso
pulou do oitavo andar
para ensinar-te as lições do desapego
você
por desapego à vida (e não ao livro)
pulou também.
Aberto sobre o teu livro aberto
tipografia sanguínea
escorrendo entre os paralelepípedos
lirismos vermelhos surpreendendo
os rostos dos passantes
que arregalavam os olhos
mas tiravam fotos da tua anatomia sincera
teu corpo mais corpo do que nunca
Se você pudesse ver de fora
não acreditaria na quantidade de sangue
que te irrigava as idéias
sorriria levando as mãos à boca
depois aos ouvidos
quando chegasse a ambulância de altíssima sirene.
***
camila vardarac
*
Um cavalo corre no campo cerebral de Muybridge
que captura suas articulações
por não aguentar a efemeridade do seu galope
congelando o movimento primórdio do animal
tecno-cientificamente classificado
como um eqüino imortalizado
Muybridge
a fim de descobrir a lógica no místico
eternizou o fascínio na luz da razão
a mesma razão que o enganou
quando apertou o gatilho da espingarda
contra o amante de sua mulher
como se além de ter capturado o corpo físico
tivesse guardado também
o instinto do objeto fotografado
cuja natureza era demasiado forte
para o seu intelecto visionário
de homem duplamente traído.
***
camila vardarac
(rio de Janeiro, 1987)
*************************
a loucura
é o confronto
de todas as vozes
o silêncio
é a recusa
que mais desafia
a luz momentânea
do que se anula
é o que vive
enquanto o excesso
é a explícita noite
que tudo apaga.
***
camila vardarac
(rio de janeiro, 1987)
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