Música primeiro embalo no útero respiração da água
halos sonoros em movimento puro
júbilo agónico de sangue sistemática
desencadeada medida em lume organizado
movimento de ondas fisionomias longas
oferecem a espuma do sangue em copos de cristal
levanta-te fidelíssimo o ser da orfandade
e em materna cadência vai modelando os soluços
do luto de não ser já o ser no pleno seio
e em miseráveis veios em duras chamas lavra claras pedras
***
antónio ramos rosa
*
Vi-lhe os flancos delicados
como se tocasse o nome
de um navio.
Eram sílabas talvez de um verso puro
ou a dócil matéria
firme
de uma ilha adolescente.
Entre um círculo de ramos
vi-lhe a tímida luz do rosto
e as duas pequenas luas dos seus seios
que estavam vivos e novos
no eléctrico pudor do seu desejo.
Vi-lhe tremer os lábios
como se quisesse suster a iminência
de um gesto eloquente
e ser apenas o murmúrio de uma folha
contra as cálidas palavras
que eu corria o risco de dizer.
***
antónio ramos rosa
*
Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.
Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.
Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)
Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.
Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.
Amor, eu sei que vives
num breve país.
Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.
Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.
O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.
O vida perfumada
cantando devagar.
Enleio-me na clara
dança do teu andar.
Por uma água tão pura
vale a pena viver.
Um teu joelho diz-me
a indizível paz.
***
antónio ramos rosa
(faro, 1924)
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Este viver comum
será nosso futuro
É nosso já presente
este amor que não temos
É nosso e nosso o tempo
que de tão longe somos
O pomo puro que negam
branco se fez no dia
***
António Ramos Rosa
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Alta pálida tenebrosa ardente,
trazida por um profundo vento
era a figura de um violento esplendor
que atravessara o carvão da morte.
O ouro das suas coxas planetárias
estilhaçava os espelhos e os quadros
e a serpente que se enroscava na sua cintura de guitarra
tinha a túmida lentidãode um vegetal incandescente.
Os seus ondulantes flancos de montanha
rasgavam o espaço como um barco de basalto.
O odor do seu sexo era negro e roxo como o do mosto
e as narinas de égua sorviam o ar ácido.
Ela beijou-me a boca com a violência fulgurante
de uma anelante pantera e eu senti que descia
a um abismo de fogo e de oscilantes trevas.
***
António Ramos Rosa
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Estou olhando os frutos repousados
e as pequenas sombras alongadas
sobre a mesa de madeira e pedra.
A brisa entra por uma porta antiga.
Uma pétala branca cai de uma flor branca.
Sou, mais do que sou, estou
na perfeição das coisas que me envolvem.
Repouso na sinuosa exactidão.
***
António Ramos Rosa
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Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.
***
António Ramos Rosa (1924)
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