Os olhos mordem o corpo e as mãos são úteis e triviais, formas de prolongar os gestos mais insensatos num teclado de tácticas brancas. Há sempre gente que passa. A tarde é demasiado sólida para permitir uma festa na galáxia do caos. Há, ainda por cima, uma procissão de crianças a pé, de patins, de bicicleta, às cavalitas de um sonho com uma neoplasia original na metade superior direita da sua realização inquebrável. Tudo parece demasiadamente digestivo e o sol hospeda a normalidade junto dos lugares inevitáveis e universais. Tudo parece desencorajar a prática abrupta, o exercício na extremidade passional, o instinto da excepção, o focinho da deslealdade. Tudo parece ameno e vagamente victoriano, com adultos que passam com a elegância e a mística do seu tempo e do seu bem-estar, com os relinchos dos cavalos dentro da sua pose aristocrática, com palácios em cada passo, silêncio no pensamento, civilização e realce. Mas os olhos daquele homem continuam a morder o corpo da mulher que se sentou ao seu lado na esplanada daquele café, perto do centro da cidade. Continuam a pedir um certo tipo de resgate e um certo tipo de explicação.
***
andré domingues
*
Uma máquina de fazer sumo da Terra e não haver sumo na Terra,
senão suor proveniente da máquina e do seu esforço incómodo,
humilhante e repetido para o conseguir.
Uma máquina de barbear mentiras, mas sem lâminas capazes de
cortar rente os pêlos encravados das mentiras. A face mentirosa
cheia de pistas de sangue e pequenas insurreições, mas a barba
intacta, como se as mentiras fossem parasitas de ferro e amassem
os pêlos em toda a sua extensão e península.
Uma máquina de costurar segredos. Segredos desfeitos. Impossíveis
de coser. Nem com a linha mais inventiva. A paciência mais pálida e
solene. A precisão de deus quando opera a sua autonomia relativa. E
os segredos degradados, como doentes parkinsónicos, perdidos de
riso, fazendo tremer o repouso onde a inutilidade de tudo exerce a
sua vocação vazia.
Uma máquina de fazer máquinas de fazer cócegas a tudo isto.
***
André Domingues
*
Parte de mim está vestida a rigor para o diálogo
e leva rosas na lapela e supernovas no epitélio
lingual e chocolates na mansidão para a sua amada.
A outra parte recebe estes presentes todos
ao pormenor no conforto de sua casa.
Depois escreve uma carta que a primeira parte
não pode nem ousa decifrar.
A primeira parte de mim parte-se em bocados e chora,
e o choro mancha-lhe a elegância, murcha-lhe as rosas,
apaga-lhe as supernovas e desmancha os chocolates.
Uma vez nua e consternada, a minha primeira parte
resolve mais uma vez contra-atacar
e usar a sua nudez e a sua consternação
a favor do bem comum e da lógica indivisa das galáxias
mas a minha outra parte e o seu universo continuam
em contracção e eu, aproveitando o intervalo
e o debate aceso entre o governo e a oposição,
tomo o partido do que está a mais
e um comprimido da classe dos inevitáveis
e vou-me deitar.
***
andré domingues
(porto, 1975)
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andré domingues
A minha vida tem perdido excepção, ar,
terra, fogo, brilho onde um espelho explica
os efeitos passivos do culto do corpo
e a queda a pique da corporação cultural.
Hoje, por exemplo, tive um rosto de afogado
de fazer corar um afogado convicto.
Estava ilustre, como um certo fantasma
que prezo no centro histórico da minha agonia.
As pessoas não se aperceberam da quantidade
de água que eu engolia. Passavam e sorriam.
As pessoas estavam mais interessadas na respiração
boca à boca que os olhares acelerados possibilitam
debaixo da sua imunidade anárquica e cínica
____e esqueceram-se de mim, enquanto cidadão
____às portas de um afogamento civilizado e contido
____e de todos os afogados em sentido figurado,
____literalmente anóxicos e contidos.
____E todos se esqueceram de todos
____e as baixas sucederam-se na baixa quase deserta
____excepto Noé e a sua mulher, Joana Dias,
____dois turistas que vieram de propósito de Aveiro
____(num moliceiro todo catita)
____curtir as cheias do Douro, diziam,
____e fotografar a tragédia líquida.
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andré domingues
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