Terça-feira, 11 de Outubro de 2011
desconjunções e vidros duplos

 

E agora digo o quê,

tão conjuntada?

Agora que a memória e a palavra

se afinaram em tudo?

Falar de noites calmas de veludo

como esta, e no silêncio?

 

Tenho janelas duplas no meu quarto,

e nem o insensato som dos carros,

nem o tom da igreja

aqui ao lado, se as fecho totalmente.

 

Mas desafinação: o mais urgente,

agora que a memória mais me falha,

agora que a palavra me abandona

como calor fingido,

e até mesmo a gaveta: bem fechada

em frente à minha cama.

 

Ah! que se eleve a meia

de seda muito preta

da gaveta,

desconjuntando tudo pelo tecto

 

Que o frio invada aqui,

um icebergue fundo de desvio

e a palavra a quebrar-se,

congelada:

um toque de cristal,

ideia de lareira bastaria.

Ou um pequeno sol.

Uma luva bastarda.

 

E o vidro mais normal

que deixasse passar insensatez,

que deixasse passar melancolia

e a desconjunção do universo.

 

As linhas todas tortas outra vez,

e a meia muito em seda e muito preta,

espreitando da gaveta,

enovelada e do avesso

em verso

 

***

 

ana luísa amaral

 

*


lido em: Entre dois rios e outras noites

publicado por carlossilva às 11:12
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Terça-feira, 2 de Novembro de 2010
os perigos do êxtase

 

Cozer um ovo:

êxtase maior.

Os minutos de cor:

um desafio.

 

E a cor

que a casca ganha

tão gratuita

e bela

 

desfaz-se perante

a gema,

monótona, amarela

 

quando o real

invade

e se estilhaçam luzes

da cozinha

 

***

ana luísa amaral

lisboa, 1956

 

******************


lido em: Entre dois rios e outras noites

publicado por carlossilva às 09:51
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Sábado, 10 de Outubro de 2009
anjos caídos

 

Neste palco de sol,

de repente:

os teus lábios:

anjos caídos mas abençoando

 

Cada curva e tremura

dentro do nervo exacto

da memória

 

Por esses lábios

eu faria tudo:

 

rasgava-me de sangue

e inocência,

partia com as mãos vitrais

e estrelas,

desintegrava o sol

 

Já não anjos caídos

os teus lábios,

mas deuses transportados

pelos meus

 

***

Ana Luísa Amaral

 

****************************

 



publicado por carlossilva às 08:57
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Sábado, 12 de Setembro de 2009
lua de papel

 

Se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,

seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,

um par de braços lisos, conformados

 

Se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,

tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,

seria mais sensata e decerto poeta bem melhor

 

Assim o que me resta é lua cheia a trans-

bordar de tridimensional. A paz a falhar toda

e eu resolvida em causa a insistir papel. E amor.

 

***

Ana Luisa Amaral

 

**********************************

 

 



publicado por carlossilva às 18:38
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Terça-feira, 21 de Outubro de 2008
um céu e nada mais

Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

 

***

Ana Luísa Amaral (1956)

 


lido em: Às Vezes o Paraíso

publicado por carlossilva às 14:16
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Segunda-feira, 30 de Junho de 2008
rimas, manhã, e sem estereofonia

Não se me dava que daqui a bocado,

pela manhã, me telefonasses e,

ignorando-me a voz de sonho errado,

dissesses devagar "gosto de ti"

 

E me acordasse o toque de telefone:

relâmpago de som, eléctrico, ou

eu, como orfeu, ouvindo o gramofone

que eurídice, a velhaca, lhe deixou

 

Muito mais bom que orfeu seria a tua

voz a romãs (ou figos, ou amoras),

daqui a unha ínfima de lua,

ou seja, mais ou menos quatro horas

 

É que não se me dava, let alone

ter que estender a minha mão e com

ela pegar em ti ao telefone

e ouvir "gosto de ti", era bem bom

 

Ma esse sonho fica-se no meu

desejo a nada, e nem o telefone

me soa a teu futuro. Vem, Orfeu,

trá-la de volta...

                            Ou traz o gramofone -

 

***

Ana Luísa Amaral (1956)

Lisboa (Portugal)


lido em: Entre dois rios e outras noites

publicado por carlossilva às 00:01
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