E agora digo o quê,
tão conjuntada?
Agora que a memória e a palavra
se afinaram em tudo?
Falar de noites calmas de veludo
como esta, e no silêncio?
Tenho janelas duplas no meu quarto,
e nem o insensato som dos carros,
nem o tom da igreja
aqui ao lado, se as fecho totalmente.
Mas desafinação: o mais urgente,
agora que a memória mais me falha,
agora que a palavra me abandona
como calor fingido,
e até mesmo a gaveta: bem fechada
em frente à minha cama.
Ah! que se eleve a meia
de seda muito preta
da gaveta,
desconjuntando tudo pelo tecto
Que o frio invada aqui,
um icebergue fundo de desvio
e a palavra a quebrar-se,
congelada:
um toque de cristal,
ideia de lareira bastaria.
Ou um pequeno sol.
Uma luva bastarda.
E o vidro mais normal
que deixasse passar insensatez,
que deixasse passar melancolia
e a desconjunção do universo.
As linhas todas tortas outra vez,
e a meia muito em seda e muito preta,
espreitando da gaveta,
enovelada e do avesso
em verso
***
ana luísa amaral
*
Cozer um ovo:
êxtase maior.
Os minutos de cor:
um desafio.
E a cor
que a casca ganha
tão gratuita
e bela
desfaz-se perante
a gema,
monótona, amarela
quando o real
invade
e se estilhaçam luzes
da cozinha
***
ana luísa amaral
lisboa, 1956
******************
Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando
Cada curva e tremura
dentro do nervo exacto
da memória
Por esses lábios
eu faria tudo:
rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol
Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus
***
Ana Luísa Amaral
****************************
Se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,
seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,
um par de braços lisos, conformados
Se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,
tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,
seria mais sensata e decerto poeta bem melhor
Assim o que me resta é lua cheia a trans-
bordar de tridimensional. A paz a falhar toda
e eu resolvida em causa a insistir papel. E amor.
***
Ana Luisa Amaral
**********************************
Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
***
Ana Luísa Amaral (1956)
Não se me dava que daqui a bocado,
pela manhã, me telefonasses e,
ignorando-me a voz de sonho errado,
dissesses devagar "gosto de ti"
E me acordasse o toque de telefone:
relâmpago de som, eléctrico, ou
eu, como orfeu, ouvindo o gramofone
que eurídice, a velhaca, lhe deixou
Muito mais bom que orfeu seria a tua
voz a romãs (ou figos, ou amoras),
daqui a unha ínfima de lua,
ou seja, mais ou menos quatro horas
É que não se me dava, let alone
ter que estender a minha mão e com
ela pegar em ti ao telefone
e ouvir "gosto de ti", era bem bom
Ma esse sonho fica-se no meu
desejo a nada, e nem o telefone
me soa a teu futuro. Vem, Orfeu,
trá-la de volta...
Ou traz o gramofone -
***
Ana Luísa Amaral (1956)
Lisboa (Portugal)
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