quando é meia noite no meu corpo,
coincide a pele com o tamanho do
desejo- ao apagarem-se as janelas
do outro lado da rua, acende-se uma
pequenina luz no caroço das frutas.
as cidades são de pedra, é bem certo
que há sempre um jardim voltado para
a loucura, onde as tuas mãos flutuam,
ou um caminho de terra batida ao mar.
eu não sei explicar as cidades de lume,
a espessa camada de fumo que envolve a
imaginação, ou a espuma cada vez mais
branca do meu sexo. eu não sei do lugar
onde recomeçam as horas, e o tempo mata
carinhosamente. eu não sei onde estás, ou
se me ouves, quando sozinha enlouqueço.
quero-te à meia noite no meu corpo. vens?
***
alice macedo campos
*
no princípio, somos esta luz queimada de água a água,
o fogo ininterrupto que se alastra na comunhão das margens,
a maré vazia, a mágoa calcinada, a imagem breve da castidade,
trabalhada pela pluma do céu com seu botão de rosa sobre o mar.
no princípio , estamos sóbrios, ignoramos o abismo caminhamos nus,
e se uma música nos toca, encostamos toda a nossa vida um ao outro,
e a luz faz, no chão onde dançamos, as efémeras sombras de uma chama,
que, de hoje para sempre, arderá no mundo à nossa passagem. e temos à
nossa espera, no fim de tudo isto, o medo com os nossos olhos na cara, e,
entre eles, a mesma água que queimou este poema, mas abaixo os braços leves,
convidativos, apetece cair nestes braços e concluir, num só corpo o verbo amar.
***
alice macedo campos
*
poema com uma hora a menos:
chama-se rosa a mulher que tirou a mama esquerda.
pinta o cabelo numa espécie de sangue vivo,
que é aquele vinho que passa de uns dias
para os outros, debaixo da nossa pele,
quando nos falta o amor de um sábado
por um domingo. a rosa tem um marido
guarda prisional que gasta o que ganha
a beber e vai para a cama demorar-se
em cima dela. nunca mais acabas com isso,
diz ela, e pousa as mãos no lençol enquanto
espera. a outra mulher, a que o poema fotografou,
tem um nome de rapaz encostado ao maria,
usa peruca escura, embora ainda tenha as duas
mamas intactas, uso isto para me proteger, diz-me,
nunca mais fiz um homem depois dos vinte e um anos,
tenho quase quarenta, às vezes o peso, e uns
lábios encostados com delicadeza, era o suficiente
para morrer. olho-a pela boca a ver se sai algum
cabelo benigno pela língua, mas desapareceu.
***
alice macedo campos
*
o meu corpo parece um cão deitado.
às vezes penso que outro cão se aproxima de mim,
para me cheirar ou lamber,
mas nunca acontece.
às vezes são os homens que se aproximam.
são cinco e estão nus,
mas mal sentem o cheiro viram costas,
na pele, como se gravado a ferro em brasas,
um tem escrito o,
outro tem escrito meu,
outro tem escrito corpo,
outro tem escrito no,
outro tem escrito teu.
os cinco homens juntos formam
o meu corpo no teu.
mas de costas são apenas homens
sem qualquer serventia.
nem sequer me lambem como um cão vadio.
às vezes penso nas mulheres destes homens:
estão em casa, muito gordas, de avental,
com o jantar à espera.
penso no corpo delas, deformado,
a barriga acumulando-se sobre as coxas,
cheia de mamas.
os homens chegam a casa, sentam-se a comer,
passam da mesa para o corpo,
sentam-se a comer.
imagino o que as mulheres lhe dizem:
aqui tens o teu jantar,
ao mesmo tempo que colocam
o prato
e o corpo
sobre a mesa
***
alice macedo campos
*
vinha para casa a pensar que um dia acordo de manhã
e cuspo pela boca os ossos peniais, e assim que tal me ocorreu,
olhei por mim abaixo, a verificar do correcto posicionamento dos pés
à frente um do outro, como se a ideia e o caminhar não fossem simultâneos,
ou algo no andar denotasse, a quem passasse, um misto de equilíbrio e de loucura.
juntei a essa a ideia de que poderia juntá-los, um a um,
para um instrumento de sopro e comecei a pensar como seria,
sempre atento aos passos que dava, na berma da estrada, procurando ouvir,
ou apenas imaginar, o som que faria, e sobretudo o silêncio que me causaria ouvi-lo.
foi então que uma mulher me abordou: olá, mírio,
emagreceu um bom bocado, disse com cabelos nos dentes,
e eu, distraído que estava, concordei vagamente, disse qualquer coisa vulgar,
sem importância, e a mulher pousou no chão os sacos que trazia,
como se ali fosse sítio para conversar, os carros na sequência brutal da tarde,
meteu as mãos nos bolsos do casaco, tirou um lenço, abriu-o, assoou-se,
fez-me aflição perceber que não afastava o cabelo dos dentes, e que
a qualquer momento diria algo sobre a sua vida, uma verdade contra a qual
eu nada poderia fazer, e procurei a banalidade, falar do sol e do bom tempo,
olhei para os sacos no chão, concentrando-me, vi num deles
uma bonita planta vermelha e sorri. a minha mãe morreu-me,
disse ela. olhei-a inquieto, como se o meu sorriso me atrapalhasse,
onde estava a alegria viva de uma planta, estava o desgosto triste desta mulher,
e ouvi-a confessar: só à força de comprimidos consigo dormir.
dei por mim a tentar medir mentalmente essa força, dei por mim a pensar
na dor que a mulher sentia e no quanto essa força teria de ser insensível à dor.
creio mesmo que a minha actividade pensante era tão visível,
que a própria mulher viu o pensamento através de mim e se afastou, como veio,
com cabelo nos dentes, carregada de tristeza. vim para casa com vontade
de escrever, de elaborar correctamente uma fórmula que defina a quantidade
precisa de um comprimido, cujo efeito elimine a dor da morte. ao mesmo tempo,
penso também na hipótese da existência, ou pelo menos da invenção,
acessível ao homem, de uma força que retire a capacidade de sentir.
estás a gostar de alguém? podiam perguntar-me, e eu, se conseguisse
criar essa medicação secreta, poderia dizer: estava a gostar de alguém,
mas consegui parar de gostar à força de comprimidos. o que aconteceu
ao que sentias?, perguntavam, e eu, anestesiado que estava,
caminhando sempre entre o equilíbrio e a loucura, diria:
o que eu sinto dorme dentro de mim como um recém-nascido.
porque a dor e o amor são os ossos que hei-de cuspir.
***
alice macedo campos
*
lembro-me de uma noite, ao sair da garagem,
o teu carro ter já deixado a rua, e da rua ser, à
luz moída dos postes públicos, uma largura infinita
de paralelos, e dos meus pés estarem paralisados, e
da paragem cardíaca do teu nome na minha boca, na
viagem mais longa que fiz à solidão.
hoje, recebi a tua carta, estava no tapete da entrada,
húmida, ligeiramente suja com cinza de cigarro, e pensei
nas tuas mãos, no gesto de enrolar tabaco, na tua língua,
no gesto de o lamber, e no quanto terás fumado cada
palavra. assim que entrei, sentei-me a ler, só depois
desfiz a mala. devo dizer-te que é muito triste
uma mulher sentada a ler com a roupa por lavar,
sobretudo antes de tomar banho, e que, por isso,
liguei a máquina naquele programa que dura
exactamente o tempo de um duche, estendi
a roupa, e ainda não sequei o cabelo.
***
alice macedo campos
*
***
alice macedo campos
*
a mulher de súbito cai no seu estado de silêncio,
está parada como se a sua própria voz cantasse distante,
e uma flor carnívora abrisse a noite extenuada no seu vestido,
ou um poema lhe transpirasse o cabelo, a misteriosa sombra das mãos.
se eu dissesse alguma coisa, um pássaro, o medo, o nome de uma ilha, as
casas onde estão a paz e a fortuna, o azul do mar, a salvação, a idade certa
em que se deixa de morrer, escreveria aqui luísa. ouço a voz que canta, o jardim
dos teus filhos, que palavra poderia dizer essa luz, ou que luz poderia incendiá-la?
o teu coração tem um peso extraordinário, sabes. aguenta três vezes o amor de mãe. e ama.
***
alice macedo campos
*
no tempo em que as crianças amanheciam,
eu pensava em ter filhos como se bastasse
esfregar as mãos. eu sorria por dentro,
fechava os olhos com força, preparando-me
para o rebentamento das águas. os dias iam
crescendo no meu ventre e, à medida que
cresciam, eu sentia o movimento de rotação
da terra, deitada de barriga para o ar.
porque o meu filho é um astro puro
à volta do qual a terra gira, no
sagrado útero das minhas mãos.
***
alice macedo campos
penafiel, 1978
*******************
vamos morrer tão nus como nascemos.
vamos morrer num dia tão frio como o nosso cadáver,
de estômago vazio.
tão cedo caminhamos e dissemos as primeiras palavras,
que nem sabemos quais,
e, por um fenômeno biológico que depois nos foi completamente explicado,
aceitamos o corpo nas suas imperfeições,
e, da cabeça para baixo,
vimos as pernas, os pêlos, e os órgãos a crescer,
como se olhos fossem a porta de uma casa.
esquecer é estar vivo,
pecar é não estar vivo.
***
alice macedo campos
(penafiel, 1978)
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