O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, tudo truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é"
***
adélia prado
*
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
***
adélia prado
divinópolis, minas gerais, 1935
***************
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
***
adélia prado
(Divinópolis, Minas Gerais, 1935)
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Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
***
adélia prado
(divinópolis (MG) - brasil, 1935)
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Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
- coisas que não dou a qualquer pessoa -
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
od olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, mão escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que é que há durão, mal de chagas te comeu?
Não, ele disse: é desprezo de amor.
***
Adélia Prado
Freitas (Divinóplis - Brasil) - 1935
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