...quando eu morrer quero que escrevam todas as minhas biografias... ora bem, quero que contem todas as minhas vidas como elas foram, as secretas e as outras... ah, e por deus não esqueçam falar da parte na que fui puta e vivi fora de meu corpo para o poder ir vendendo a homens que sonhavam com se desfazer de uma alma que lhes ardia dentro... eles necessitavam um corpo e a mim sobrava-me... mas nem eles conseguiam deixar em mim a sua alma nem eu consegui nunca me desfazer do corpo que segue comigo ainda hoje, não esqueçam contar isso...
como não devem esquecer contar de minha etapa de freira, quando eu morava num silêncio de pedra que me fazia adoecer os joelhos, aí tinha o meu corpo todo para mim sozinha e o chão duro... mas sobre tudo não se esqueçam de falar da mãe que fui, sempre duvidando de se o estaria a fazer bem, sempre, mesmo tendo a certeza de que não há forma de o fazer bem, nem jeito de saber o que é fazer bem, curei da meninha que ficara danada dentro de mim desde a infância, essa criancinha que todos temos e nos tapa os olhos impedindo-nos ver os filhos e filhas de carne e osso diante de nós...
também quero que contem quando fui deus, e consegui que todos me obedecessem, mas não durei muito tempo porque aquilo dava-me muito trabalho, e quero que saibam que se em alguma cousa eu fui constante foi em aborrecer o trabalho repetitivo, deixei o meu emprego de deus, já tinha deixado o de puta e o de freira antes, ora que esquecer-me de seguir sendo deus custou-me... tenho por aí muitas outras partes que não quero que esqueçam, por justiça não se me vão esquecer da poeta, essa, a coitada padeceu por todas as demais... até pola desenhadora de mapas do inconsciente, que resgatara todas em alguma ocasião...
e a coleccionadora dos suspiros do loureiro, está última noutro tempo teriam-na chamado de louca mas nos tempos que viveu já a gente se desentendera de ver outra gente... e ela via apenas o seu loureiro e contava os seus suspiros... depois sempre saía voando com alguma melra que chegasse ao quintal... mas de entre todas elas se só podem escrever sobre uma... aí então escrevam sobre a labrega, a cultivadora da terra... essa foi a primeira em nascer e a última em morrer, a labrega enterrou as outras todas, incluída a que era deus... e sobretudo enterrou a puta, a labrega estava enraizada no corpo e nem quando era puta, ou freira, ela se foi embora... sempre gravando tudo, nem sei como permite às mãos hoje escreverem isto...
e já agora não se esqueçam da política, essa foi a mais patética, mas o pior é que ela também o sabia, candidata sem fé e com consciência... e as outras biografias todas que ainda faltam, por favor esqueçam-se delas, esqueçam a que cantou em mim, esqueçam essas e as outras todas... depois quando tudo esteja, palavra após palavra, deitado nas folhas, peço que as juntem e as queimem sem ler... meu último desejo é que sejam cinza como eu...
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concha rousia
covas (galiza), 1962
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