A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
***
josé tolentino mendonça
*
no princípio, somos esta luz queimada de água a água,
o fogo ininterrupto que se alastra na comunhão das margens,
a maré vazia, a mágoa calcinada, a imagem breve da castidade,
trabalhada pela pluma do céu com seu botão de rosa sobre o mar.
no princípio , estamos sóbrios, ignoramos o abismo caminhamos nus,
e se uma música nos toca, encostamos toda a nossa vida um ao outro,
e a luz faz, no chão onde dançamos, as efémeras sombras de uma chama,
que, de hoje para sempre, arderá no mundo à nossa passagem. e temos à
nossa espera, no fim de tudo isto, o medo com os nossos olhos na cara, e,
entre eles, a mesma água que queimou este poema, mas abaixo os braços leves,
convidativos, apetece cair nestes braços e concluir, num só corpo o verbo amar.
***
alice macedo campos
*
cotovelos sobre cacos de vidro retém as palavras enquanto o sangue foge, desenho as letras do seu nome dentro do coração transformado em origami de caveira. sim, a lucidez é tão impossível quanto o silêncio e paixão sem êxtase ou morte é como estar entre os vivos num enterro: a neutralidade - existe quando ressus-citas o poeta morto para assassinar o que em ti nasce sem permissão
***
camila vardarac
*
ainda estou aqui sem saber começar
porque não me acostumei com as metades
nem com os inteiros
quando me dou conta estou perto do fim
ou depois do meio [no meio de mim]
onde todos os caminhos se extinguem
e as pedras servem melhor aos estilingues
haja pulmão para tanto oxigênio
e hidrogênio quando falta o ar
na tentativa de vir à tona na hora errada
o sol a pino, o pino da granada,
a pressão, a queda
a verdade liquidada
[onde há campos minados
e nenhum verso seguro
ou se ouvem as explosões
ou apenas os soluços]
***
adriana coelho
rio de janeiro
*
como fixar os mapas - do inabalável - na iminência do mar - de sargaços - escutar - seu corpo - inábil - do ar - da água - o incomensurável -
sob o inerme - a pronunciação que não cessa - a paráfrase infinita - voz do intérmino - nostalgia - do solícito -
lyrosophie - injunção- (sobre)posição - da palavra - ténue saciedade - da pedra irremovível - a areia e o mar - códices do aéreo -
***
alexandre teixeira mendes
*
Cresce, sem paralaxe, o Autor de rua, Autor de montão, uma técnica de criar país fora dos espetos, a boca filiada num cigarro previamente fumado pelo asfalto dos vermes. Voga pluvial o sonho neste dossel de lençol permeável, funéreo design_io inscrito por dentes emprestados para fonificar o empréstimo: a língua. Pouco o Autor fala, transita em exagero a brutal e pletórica contenção. Uma manta suja de retórica em função, a escarradela como o mais sábio petroglifo destes corpos que esperam o autocarro para os subúrbios de Vénus.
Ao largo do indoor, outro monturo se prepara nos milímetros à volta: a sucção em general das imagens. Uma violenta cruz nocturna, talhada no silêncio conforme, propaga a muralha diante da freguesia. Os numerosos Autores comem rostos. Com eles são deitados e administrados, o corpo fora da vigília. Pagam em força, fealdade e inexistência, mesmo quando a voltagem dos neuro-receptores lhes instiga clarões de santelmo, episódios de marra, marrativas.
O alto vigia dentro como o arcaico omni, agora sem reivindicação, cada consumidor do divino leva o remorso no zigoto. Saem roncos de expedições às barragens. Um elevador de carmim equilibra o movimento rodando, como se fôra diverso, os cardápios das sensações de comércio, de deitar fora. Os transportes, em teleologia ou noética, estão protegidos pela loucura, pelas Pistas. Têm Patente.
Todos sangram, todos urgem. No assisdente, estilhaça-se o envase. A extensão do fragor inicia a Arca d'Alva, nova rataria se apressa a imprimir bilhetes para as viagens Ao Mesmo. como se a ignição do repetido, da droga funcionária, fosse a Doroteia do Júlio Dinis, uma retro mediocritas marketada em aurea, o Re-nascimento, essa utopia que sustenta a prisão.
***
alberto augusto miranda
*
A néboa esváese
e os homiños azuis fanse nidios.
Pasa a luz entre as follas,
e como inocentes cabalos
estiran os colos.
Beben
todo o azul das charcas,
cristal misterioso,
vasta extensión inabarcable
do corazón.
***
anxo pastor
*
nas tardes lhargas
pulas nuites fondas
ne ls delores sien fin
la semiente inda speras
pa tan caros dies
mal apenas ganhas
i siempre de la candeia
na mano l pubitador
um metro que scabas
la polha que nace
ou rachon a arder
daprendiste a poupar
la chama de ls dies
buolto a tou eissencial
***
fracisco niebro
*
nas tardes longas
pelas noites fundas
nas dores sem fim
a semente ainda esperas
para tão caros dias
quase não ganhas
e sempre da candeia
na mão o espevitador
um metro que escavas
o rebento que brota
ou o racho a arder
aprendeste a poupar
a chama dos dias
devolvido ao teu essencial
Uma máquina de fazer sumo da Terra e não haver sumo na Terra,
senão suor proveniente da máquina e do seu esforço incómodo,
humilhante e repetido para o conseguir.
Uma máquina de barbear mentiras, mas sem lâminas capazes de
cortar rente os pêlos encravados das mentiras. A face mentirosa
cheia de pistas de sangue e pequenas insurreições, mas a barba
intacta, como se as mentiras fossem parasitas de ferro e amassem
os pêlos em toda a sua extensão e península.
Uma máquina de costurar segredos. Segredos desfeitos. Impossíveis
de coser. Nem com a linha mais inventiva. A paciência mais pálida e
solene. A precisão de deus quando opera a sua autonomia relativa. E
os segredos degradados, como doentes parkinsónicos, perdidos de
riso, fazendo tremer o repouso onde a inutilidade de tudo exerce a
sua vocação vazia.
Uma máquina de fazer máquinas de fazer cócegas a tudo isto.
***
André Domingues
*
À memória de Ramona Pardo, da Casa de Casumira
Em algum momento me foram distribuídos os sentidos
para ver eu a manhã que esfria
e come a pintura verde da tua janela
que agora só dá para o nada.
Estava sentada na estação da pobreza
e de repente pensei em ti
a mulher que levo por fora
suporta a duras penas a fera da introspecção
porque passo diante do teu casebre em ruínas
e parece
que ainda espero que a memória extinta duma aldeã
que usou o teu nome
para passar tanta fome
assome a essa janela verde
e me acene com a mão para confirmar que existo.
Velhinha que te vais
tens o dom da extinção
e a chave para decifrar
o alicate que retorce o céu como um ferro
e o faz chover até chorar isso
que faz de nós
uma estrutura acabada
de portas para dentro.
Vais
pelo avesso da miséria
sem roupa nenhuma
falando com doçura a um pote cheio de carvão
e a sombra vai-se-te pelos caminhos
falando sozinha
quanto tens que dizer
***
olga novo
*
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