passaram cem anos seu eu ver o teu rosto,
prender a tua cintura,
passar o dia nos teus olhos,
questionar a tua sapiência,
e estar próximo do calor do teu ventre.
passaram cem anos que uma mulher me espera
numa bela cidade.
nós, nós estávamos na mesma rama,
nessa mesma rama.
caímos dessa mesma rama e separámo-nos.
e hoje cem anos nos afastam,
cem anos de caminho.
hoje faz cem anos que
por entre a escuridão
eu a procuro.
***
nazim hikmet ran
turquia, 1901 - 1963
*
* tradução de Pedro Calouste
guerra
tique nervoso
à espera de alguém
que venha
beber água
desabotoar as calçasacumular fôlego
jogar bola
atirar no macio
arrancar os músculos
pra sufocar
com o próprio peso
o peso do outro:
uma bigorna
um piano
um travesseiro.
***
ana guadalupe
*
Trânsito parado
a namorada do alcoólatra
de olho roxo
cantando contente
no carro ao lado.
Mais à frente
a mãe indiferente
à guerra das crianças
no banco de trás.
Logo atrás
um pálido em pânico
reza ao volante sagrado
suando agarrado a ele
como se fosse seu salvador.
Do lado de lá
a moça que tem uma porca
com colar de pérolas tatuada no braço
escuta músicas jamais compostas
em um cd imaginário, inexistente.
Assim ela esquece seu cansaço
assim como a doce febre que sente.
Em helicóptero, na TV, visto do alto
engarrafamento, trânsito lento
é apenas belo bordado
de carros no asfalto quente.
***
greta benitez
curitiba (brasil), 1971
*
poema com uma hora a menos:
chama-se rosa a mulher que tirou a mama esquerda.
pinta o cabelo numa espécie de sangue vivo,
que é aquele vinho que passa de uns dias
para os outros, debaixo da nossa pele,
quando nos falta o amor de um sábado
por um domingo. a rosa tem um marido
guarda prisional que gasta o que ganha
a beber e vai para a cama demorar-se
em cima dela. nunca mais acabas com isso,
diz ela, e pousa as mãos no lençol enquanto
espera. a outra mulher, a que o poema fotografou,
tem um nome de rapaz encostado ao maria,
usa peruca escura, embora ainda tenha as duas
mamas intactas, uso isto para me proteger, diz-me,
nunca mais fiz um homem depois dos vinte e um anos,
tenho quase quarenta, às vezes o peso, e uns
lábios encostados com delicadeza, era o suficiente
para morrer. olho-a pela boca a ver se sai algum
cabelo benigno pela língua, mas desapareceu.
***
alice macedo campos
*
Anúnciame
Espanta las sombras que ladran a mi paso
y los ojos curiosos que desde los resquicios
me ven andar a tientas
desandando
Alláname el camino
que tropiezo
porque no estaba escrito que volviera
(el polvo sacudido de mi cuerpo
se levanta de nuevo y se me pega)
Anticípame
Nada quiero dejarle a la sorpresa
Salí de mí huyendo de este grito
pero el grito me alcanzaba adonde fuera
***
américa martinez ferrer
caracas (venezuela), 1976
*
Anuncia-me
Espanta as sombras que ladram à minha passagem
e os olhos curiosos que pelas fendas
me veem andar às apalpadelas
recuando
Alisa-me o caminho
que tropeço
porque não estava escrito que voltaria
(o pó sacudido do meu corpo
levanta-se de novo e cola-se a mim)
Antecipa-me
Não quero deixar nada ao acaso
Saí de mim fugindo de este grito
mas o grito alcançava-me onde quer que fosse
*
[trad: cas]
Cando deixo de ser flor,
molesto.
Pero o duro era ser, o
infatigablemente aciago.
Que eu contraese algunha seria doenza
favorecería grandemente á miña obra literaria.
Como non teña traballo, marcho para Las Vegas.
Nos Estados Unidos son máis guapa que en ningún sitio.
Pero teño sido agre e pretenciosa,
teño sorrido por interese propia,
a axetreada capitalista sexy;
compensei polos meus días de impotencia.
Ser
é o difícil.
Cando falei só contemplaron os meus labios.
¿Se me tomo un descanso iso
faráme irresponsable?
¿se son vulnerable
serei pisoteada?
¿se me fosen peor as cousas
quereríadesme máis?
Unha profusa navalla é o proxecto da identidade,
un reiseñor mecánico a tarde.
Tanto souvenir acabará con Notre Dame
¿Onde estabas cando te necesitei?
***
yolanda castaño
*
la autopista piensa que tiempo y muerte
son el mismo dios
siente la gravedad de los cuerpos
y decide ser río
ahora nada le pesa
ni las rocas
ni los peces
ni las plantas
desde el fondo se ve a sí misma
corriendo en su humor alcoholado
comprende la mentira de la transparencia
la transparencia es ilusión
le dice el polvillo acumulado
que ella respira sin ver en la oscuridad
escucha palabras que entreabren algunas ventanas
siente que nada está en su lugar
no hay sistema
no hay sentido
no hay niveles ni formas
no hay orden
lo que hace despegar es el vacío
el alfabeto como un pasaje sin destino
el transitar erróneo de los sonidos de una lengua a otra
porque no es posible escuchar
porque es la ilusión de los borrosos escuchar
el alfabeto en tránsito es la ruleta rusa
la autopista cuando es río se libera del juego
***
gladys mendía
venezuela, 1975
*
O TRÂNSITO DO ALFABETO
a autoestrada pensa que tempo e morte
são o mesmo deus
sente a gravidade dos corpos
e decide ser rio
agora nada lhe pesa
nem as rochas
nem os peixes
nem as plantas
desde o fundo se vê a si mesma
correndo no seu humor alcoolizado
compreende a mentira da transparência
a transparência é ilusão
lhe diz o pó acumulado
que ela respira sem ver na escuridão
escuta palavras que entreabrem algumas janelas
sente que nada está em seu lugar
não há sistema
não há sentido
não há níveis nem formas
não há ordem
o que faz despegar é o vazio
o alfabeto como uma passagem sem destino
o transitar erróneo dos sons de uma língua a outra
porque não é possível escutar
porque a ilusão dos confusos é escutar
o alfabeto em trânsito é a roleta russa
a autoestrada quando é rio se liberta do jogo
*
[trad: cas]
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas