Ao tocar suavemente os lábios da noite intuí como ela dançava dentro de si.
As gotas de vinho sobre a mesa refletiam o milagre daqueles seios.
Ali dentro a música tremia com a paixão do vento pelas árvores mais altas.
Tudo nela era uma floração de mistérios.
Suas pernas alcançavam os melhores agudos.
A noite convulsa soletrava a voragem de suas ancas.
O ritmo sempre antecipado de cada vertigem.
Juro que pude ler a oração que rascunhava seus mamilos na pele interior do vestido,
como se fosse escrita em meu próprio peito.
A noite me beija como um espelho repleto de memória, sonho transbordando imagens,
seus lábios roçando a paisagem de corpos flutuantes entregues aos gemidos que
escorriam pela toalha mesa abaixo.
E ao beijar-me pude entender o quanto a vida suplica para estar ali em sua fonte, aos
pés do mito que alimenta com seu fogo líquido.
Não houve mais como regressar dos lábios dessa mulher.
***
floriano martins
fortaleza (brasil), 1957
*
Madre,
recógeme el sonido de la lluvia en el tejado del abuelo
cuéntame de las noches en que descubrí la sed por los
acantilados
y de cómo desprendiste el fuego de la luz
para permitirnos en encuentro con nuestros primeros
demonios.
Recuerda nuestra estancia eterna en los rincones de la casa
cuando aún llovían tardes grises en al arena
y la lluvia mohosa venía con abril
y todavía no tenía miedo.
***
andrea cote
barrancabermeja (colombia), 1981
*
Medo
Mãe,
recolhe-me o som da chuva no telhado do avô
fala-me das noites em que descobri a sede pelos
alcantilados
e de como desprendeste o fogo da luz
para permitir-nos o encontro com os nossos primeiros
demónios.
Recorda a nossa estadia eterna nos recantos da casa
quando ainda choviam tardes cinzentas na areia
e a morrinha chegava em abril
e ainda não tinha medo.
*
[trad: cas]
Cruel hasta el fondo
hay
un río en mi memoria
de niño cantaba para desviar
el curso
de ese río
pero miraba hacia atrás
el río crecía y me inundaba
ahora ya viejo
junto a las piedras
el río me sacude
mis pies apenas lo soportan
***
reynaldo pérez só
caracas l venezuela, 1945
*
Do Livro Tanmatra (1972)
***
Cruel até ao fundo
há
um rio na memória
em criança cantava para desviar
o curso
desse rio
mas olhava para trás
o rio crescia e me inundava
agora já velho
junto às pedras
o rio me sacode
meus pés mal o suportam
*
[trd: cas]
Primeira função do mar,
transformar arriba em pedra,
pedra em areia,
areia em mar.
Segunda função do mar,
impedir a deslocação
dos homens,
afundar-lhes as pontes imaginárias.
Terceira função do mar,
aterrorizar o silêncio da costa,
engolir os pássaros,
arrancar-lhes as asas.
Quarta função do mar,
refrescar os desertos
plantando o sal em flor
pelos continentes.
Quinta função do mar,
contrariar a sua própria natureza,
fazer-se veículo,
promotor de encontros.
Sexta função do mar,
exagerar as distâncias do humano
demorando-lhe cada passo
na exigente multiplicação dos pesos.
Sétima, e última, função do mar.
Exercer sobre a multidão
o fascinante tormento
da beleza.
***
luís filipe cristóvão
torres vedras, 1979
*
Quando Vieres
Traz no teu canto
Todo o encanto de novos cabos
Traz as gravuras de outras ilhas
E continentes.
Traz a canela e o alecrim
E o requinte da partitura.
Traz outros fados e vivas heras
Ensina ao vento o som das quimeras
Ou chove comigo nos mesmos poros.
***
conceição lima
*
Avistei a boca ao entardecer.
A língua não vinha nos mapas, mas no palato agrupavam-se diversas constelações
e pertencia-lhes a ventura dos meus dedos.
Não havia notícias de outros povos
nem sequer uma mácula de cerejas.
Plantei o primeiro seio
a que chamámos macieira
e abandonei o ventre
à generosidade vegetal.
Nessa noite dormimos por dentro e por fora
do mundo.
***
catarina nunes de almeida
*
Yo despierto al anochecer
a la hora en que la página madura su agonía
Los búhos aletean sobre estas ciénagas
en donde mi cuerpo destila sus delirios
el voluptuoso deseo de despertar con el sonido
de un fauno desperezándose entre frutas y aromas lejanos
Se escucha el vaivén de las horas
en este barco afantasmado
el ocre derrite sus animales
Antiguos descensos estos
que me hacen persignar al claror de la noche
en un cielo despejado por el resplandor
de una luna dormida blanco papel incandescente
Despierto al anochecer
cuando los pájaros no se dejan ver
los rostros se me pierden
en el río pardo que nos arrastra
Despierto al anochecer
a la hora en que la página madura su agonía
como un pez desorbitado de sus aguas.
***
luis henrique belmonte
caracas - venezuela, 1971
*
Eu acordo ao anoitecer
à hora em que a página madura sua agonia
As corujass adejan sobre estes lamaçais
onde meu corpo destila seus delírios
o voluptuoso desejo de acordar com o som
de um fauno a espreguiçar entre frutos e aromas distantes
Escuta-se o vaivém das horas
neste barco afantasmado
o ocre derrete seus animais
Antigos descensos estes
que me fazem persignar ao claror da noite
noite num céu despejado pelo resplendor
de uma lua dormida branco papel incandescente
Acordo ao anoitecer
quando os pássaros não se deixam ver
os rostos se me perdem
no rio pardo que nos arrasta
Acordo ao anoitecer
à hora em que a página madura sua agonia
como um peixe saido da órbita de suas águas.
*
[trad: estrella gomes]
*
(De: Cuerpo bajo la lámpara / Do Corpo baixo o lustre)
O Rio de Janeiro assa. Vai
chover. Meninas fervem pelas bordas.
Há quem voe no afã da fuga. Nada.
Mamíferas emergem dando corda:
não senti o arpão bífido daqueles
olhos. Nem me afastei de nenhum barco
por amor. A malina encobre meus
desejos incompletos. Pelo mar
deslocam-se surpresas. Venta mais.
Vai chover e a cidade arde demais.
Experimento as bordas das meninas.
O pescador imita a minha cria
com gemido eletrônico. Confundo-me
com os gritos. Despeço-me de tudo.
***
lígia dabul
rio de janeiro
*
Trago comigo coisas abandonadas.
Coisas que os homens jogaram fora:
placentas, gânglios, guirlandas, guelras.
Marize Castro, "Muralha"
a partir de Concha e Aurora,
criações de Ângela Barros e Alberto Guzik
agora já são cinco privês
antes era um prédio respeitável
escavo escadas ante a mudez
do elevador, guilhotina pichada
no pó suspenso no ar
catedrais de coisas abandonadas
e lá dentro chafurdo com minhas duas
mãos nas peças de cerâmica
e como parteira tiro do barro
um caco, um vaso, um sonho, um sopro
***
ana rüsche
são paulo (brasil), 1979
*
In Sarabanda. São Paulo, Selo Demônio Negro, 2007.
La vida irrumpe desde una bolsa de aguas.
La bolsa o la vida.
Bolsa de empleo, bolsa de desempleo.
Enfundarse en la cabeza una bolsa de plástico
es un procedimiento de suicidio.
Unos se embolsan -y nunca reembolsan-
mucho de lo que muchos desembolsan.
Otros invierten en Bolsa.
Todos se sienten sucios sin su bolsa de aseo.
Para el que nada tiene,
dar un tirón de bolso es un día de vida.
Una bolsa de estudios abre un mundo,
una bolsa de viaje cierra un sueño.
El viento hace rodar las bolsas por el suelo,
las cuelga de los árboles, las dispara a las nubes.
Bolsa del pan, bolsa de petróleo.
Estallan de tristeza los bolsillos vacíos.
Cuánto cuesta ajustar la bolsa de la compra.
Qué bien ajusta la bolsa del placer.
Ocultamos los cadáveres en bolsas
para que no nos molesten.
La bolsa de basura es nuestra biografía.
***
ángel guinda
zaragoza, 1948
*
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