a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho, ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval do notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa.
***
tiago araújo
*
Tu já estavas prometido à tristeza
da cidade mais pequena. Mas a noite
tinha passagens secretas, bastava seguir os sinais.
Uma sombra avançava muito fundo
nos teus estratos, tacteavas um território
de pedras difíceis, às vezes perigosas.
Depois imergias e a boca estava amarga
outra vez, a roupa amontoada na cadeira
como o princípio de um poema indesejado.
Reflectido nos teus olhos, o céu
era um lugar inabitável.
***
rui pires cabral
*
Lançados do alto das nuvens
obedecemos à gravidade
com que a turba
se esfuma
somos faúlhas contrárias,
fogo preso à solidão,
artifício nos olhos,
pólvora na fala,
cada um para seu lado da serra
em cinzas
caindo.
***
rui lage
*
Quem vive para o amor está lixado
não tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por perto. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
- pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.
***
rui caeiro
*
Irreconciliável shopping no campo,
de parques subterrâneos esgotados
e de luzes que atraem
borboletas nocturnas como gente.
O destino de se ir de loja em loja
e milhares de corpos que se cruzam
nas escadas rolantes,
vigiados por câmaras e guardas insolentes.
Dia artificial dentro da noite,
em que tremem de frio
a oliveira, o coelho bravo
e o arrumador de carros viciado.
***
nuno dempster
*
Desce enfim sobre a manhã
uma quietação de alma;
E ao subir o fecho da calça,
Esqueço a noite em que uma alemã,
Com falsa antipatia, quis um verso inglês.
A mão já não treme ao terceiro branco,
É com altivez que me chego ao quarto,
Pronto à hermética de tasco.
Entre solavanco e pernalta
Borreguei, então, ao modo gasco.
Fosse poeta noutra vida
Ou escriturário nos Douradores,
Com chuva lá fora e metafísica dentro,
A senhora teria métrica entre-perna,
Mais adequada talvez,
De quem mão não treme no final do mês.
***
nunes da rocha
*
Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.
Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.
Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.
Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.
***
miguel martins
lisboa, 1969
*
Ao fazer a mala, reparou que pouco
levava daquela lúgubre cidade.
Alguns vestidos, as primeiras frésias,
que tivera de presente, agora murchas,
uma dezena de exemplares de Moody
que lhe serviram para amortalhar o resto.
Se é que alguma coisa restava, pensou
junto ao aparador, enquanto no espelho
se perdia o fogo ruivo dos cabelos,
sublinhado pelo negrume do olhar.
Ao ajoelhar-se sobre a mala, escreveu,
em vez do seu nome, «Goodbye to love».
Era esta também a sua única morada,
até que a morte ou a chuva a apagassem.
***
manuel de freitas
*
Hoje soube uma coisa extraordinário,
que morreste; talvez já to tenham dito,
embora o caso verdadeiramente não
te diga respeito, e seja assunto nosso, vivo.
Algo, de facto, deve ter acontecido,
porque nada acontece, a não ser o costume,
amor e estrume, quanto ao resto
tudo prossegue de acordo com o Plano.
Há apenas agora um buraco aqui,
não sei onde, uma espécie de
falta de alguma coisa insolente e amável,
de qualquer modo, aliás, altamente improvável.
Depois, de gato para baixo, mortos
(lembrei-me disso de repente,
agora que voltaste malevolamente a ti)
estamos todos. A gente vê-se um dia destes por Aí.
***
manuel antónio pina
*
«Soube encontrar no areão a flor em transe.»
e apontaste o ventre aberto da ondina:
carnagem crua te enquadrava, laminosa,
a face fria com a nuvem de falenas,
um relâmpago no estômago, e essa ombreira
pálida à mercê da lamparina; ovíparos
recados sob estacas, e tripas, e folhas
e escamas também. Engastado à tua voz,
«Toca-me os olhos com as pontas, sem a sombra
que de repente se enrolou entre os meus passos.
Vê, sob os círculos do peito, o peixe negro:
morde, puxa, rasga a pele do braço avesso»
E há tempo à justa pra empalhar outra corola,
o laço escuro a ecoar a trovoada
***
luís manuel gaspar
*
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