Roça-me também tu com tua asa - única parte
verdadeiramente palpável de ti.
Que não seja sempre a inoportuna
asa da morte, semelhante à dos morcegos,
a roçar-se por mim.
Naquelas noites de temporal desfeito
que nada alumia nem aquece,
nem sequer a memória, que costuma ser
o que temos de mais quente e luminoso -
- nessas noites desabridas,
se a tua asa me roçasse o rosto,
recebê-la-ia como um nu recebe uma manta;
como um viandante em noite de Inverno
a quem é oferecido um canto à lareira
e uma candeia
para esconjuro das trevas e do frio.
Roça-me com ela, por favor,
ao menos uma vez e numa noite dessas.
***
a. m. pires cabral
*
en la visión frontal de tu sonrisa
hay un diente que se lleva todo el protagonismo
sin quererlo
es como la señorita presentadora de telediario
a la que todo el mundo mira por la calle porque se le ven las piernas
"pero las piernas son más largas que los dientes"
le dijo el lobo a caperucita
"o no"
le contestó ella
mordiéndolo (pronúnciese despacio y nótense
las letras acariciando el cuello)
mordiéndolo
con una conciencia feroz
de que el cuento no siempre es como lo cuentan
***
eva cabo
*
lobos e capuchinhos vermelhos
na visão frontal do teu sorriso
há um dente que leva todo o protagonismo
sem querer
é como a menina apresentadora do telejornal
a quem toda a gente olha na rua porque lhe veem as pernas
"mas as pernas são mais compridas que os dentes"
disse o lobo ao capucinho
"ou não"
respondeu-lhe ela
mordendo-o (pronuncie-se devagar e realcem-se
as letras acariciando o pescoço)
mordendo-o
com uma conciência feroz
de que o conto nem sempre é como o contam
*
[trad: cas]
coisas pouco belas enfrentavam a manhã
que não as desfazia
ao longo da travessa estreita e colorida
as mesas inclinadas na calçada irregular
pratinhos trepidantes com cafés
diziam tudo
à vida escorregadia
então um sopro de anima
e houve de ti imagem
como se sentado na esplanada
fosses um tal de lisboeta
e eu de perto
como se à luz raiante da manhã
o grande mundo me mostrasses
ainda infantil brilhante
no fundo do caleidoscópio
depois
as folhas cintilaram horas
e a vida perturbou a calçada
uma carrinha vermelha passou
embalada fosforescente
a luz ou eu
voou um corropio
e um pássaro gritou
sem ti
[mais tarde à noitinha por entre a escuridão
escrevi-te: ensina-me a prender luz nas mãos]
***
ana paula sena belo
*
que non sei se respiras ou calmeas
derrubado, país, sobre o coído
país, amante, longa foi a noite
quen sabe cando o limpo será limpo
¿foi amor ou tumulto? das beiradas
tiramos a podremia coas mans núas
¿tumulto ou resistencia? beber sudre
remontar a maré, tomar as rúas
da Vaca de Fisterra amargo ouleo
nas sirenas resoa de faro a faro
clamando polos mortos, capitáns
de gamelas perdidas nos naufraxios
dornas, bucetas, lanchas de relinga
crebadas nas arestas dos baixíos
valédenos na cerna da negrume
en tempos de extravío
o corpo nu, envolto só na rede,
baixo o lameiro negro limpa a man
resistimos, amor, cando pretenden
tomar o nome do arao en van
***
marilar aleixandre
madrid, 1947
*
vinha para casa a pensar que um dia acordo de manhã
e cuspo pela boca os ossos peniais, e assim que tal me ocorreu,
olhei por mim abaixo, a verificar do correcto posicionamento dos pés
à frente um do outro, como se a ideia e o caminhar não fossem simultâneos,
ou algo no andar denotasse, a quem passasse, um misto de equilíbrio e de loucura.
juntei a essa a ideia de que poderia juntá-los, um a um,
para um instrumento de sopro e comecei a pensar como seria,
sempre atento aos passos que dava, na berma da estrada, procurando ouvir,
ou apenas imaginar, o som que faria, e sobretudo o silêncio que me causaria ouvi-lo.
foi então que uma mulher me abordou: olá, mírio,
emagreceu um bom bocado, disse com cabelos nos dentes,
e eu, distraído que estava, concordei vagamente, disse qualquer coisa vulgar,
sem importância, e a mulher pousou no chão os sacos que trazia,
como se ali fosse sítio para conversar, os carros na sequência brutal da tarde,
meteu as mãos nos bolsos do casaco, tirou um lenço, abriu-o, assoou-se,
fez-me aflição perceber que não afastava o cabelo dos dentes, e que
a qualquer momento diria algo sobre a sua vida, uma verdade contra a qual
eu nada poderia fazer, e procurei a banalidade, falar do sol e do bom tempo,
olhei para os sacos no chão, concentrando-me, vi num deles
uma bonita planta vermelha e sorri. a minha mãe morreu-me,
disse ela. olhei-a inquieto, como se o meu sorriso me atrapalhasse,
onde estava a alegria viva de uma planta, estava o desgosto triste desta mulher,
e ouvi-a confessar: só à força de comprimidos consigo dormir.
dei por mim a tentar medir mentalmente essa força, dei por mim a pensar
na dor que a mulher sentia e no quanto essa força teria de ser insensível à dor.
creio mesmo que a minha actividade pensante era tão visível,
que a própria mulher viu o pensamento através de mim e se afastou, como veio,
com cabelo nos dentes, carregada de tristeza. vim para casa com vontade
de escrever, de elaborar correctamente uma fórmula que defina a quantidade
precisa de um comprimido, cujo efeito elimine a dor da morte. ao mesmo tempo,
penso também na hipótese da existência, ou pelo menos da invenção,
acessível ao homem, de uma força que retire a capacidade de sentir.
estás a gostar de alguém? podiam perguntar-me, e eu, se conseguisse
criar essa medicação secreta, poderia dizer: estava a gostar de alguém,
mas consegui parar de gostar à força de comprimidos. o que aconteceu
ao que sentias?, perguntavam, e eu, anestesiado que estava,
caminhando sempre entre o equilíbrio e a loucura, diria:
o que eu sinto dorme dentro de mim como um recém-nascido.
porque a dor e o amor são os ossos que hei-de cuspir.
***
alice macedo campos
*
seguiu eses camiños buscando unha lanterna
algún deses trebellos que deitan unha luz
e furtan por un tempo a escuridade
e soubo que eran épocas de sombra
o campo estaba inzado de xente a camiñar
cos brazos alongados apalpando
e daban entre todos a impresión
de seren cegos loucos
dementes que perderan o don da claridade
os rostros que esqueceran os seus ollos
e puido comprender que se chamaban con nomes de misterio
palabras nunca antes pronunciadas
vocábulos que os ventos roubaran nalgún pozo
e frases como enigmas
entón saíu o sol e todo foi igual
ninguén podía velo
e ían camiñando cara ao río
caían polas beiras dos regatos
morrían afogados
e el púxose a berrar
e viñan cara a el
quen sabe o que entenderan
e víanse nas linguas labirintos
e tiñan entre os dentes o solpor
da torre penduraba o corpo dun suicida
***
manuel forcadela
*
Cuando digo luz
no quiero decir claridad de pensamiento.
Cuando digo luz
quiero decir un trozo de cielo azul, un trozo de viento sur
moviéndose entre las ramas altas del árbol.
Un trocito de verano enredándose entre mis ojos
sólo eso.
Cuando digo luz
no quiero decir alma, no quiero decir eternidad,
quiero decir un libro tuyo,
un libro tuyo,
como un trocito de viento azul
enredándose entre mis ojos
¡tan alto!
***
elisabeth candina laka
*
Luz?
Quando digo luz
não quero dizer claridade de pensamento.
Quando digo luz
quero dizer um pedaço de céu azul, un pedaço de vento sul
movendo-se entre os ramos altos da árvore.
Um pedacito de verão enredando-se entre os meus olhos
só isso.
Quando digo luz
não quero dizer alma, não quero dizer eternidade,
quero dizer um livro teu,
um livro teu,
como um pedacito de vento azul
enredando-se entre os meus olhos
tão alto!
*
[trad: cas]
emerxo coa virulencia do fenix
dentre a escravitude do teu corpo.
infrinxo as normas para reterte na concavidade
da miña brancura,
a que, ata hai nada, admirabas,
na que, ata onte, dibuxabas as liñas curvas
doutras ninfas.
esnaquizada baixo a tensión dos teus beizos,
arrebato o xemido,
o berro,
a furia desta nova gaiola na que me atesouras.
a luz esbara pola corteza dos meus sentidos,
pérdome, na brétema, dos teus ollos,
e volto, novamente a afondar no lume
dun novo nacemento.
***
eva méndez doroxo
*
Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.
Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.
***
clarice lispector
*
Abrigaba horas de loito cravadas por todo o corpo,
os espectros da ausencia pintados nos labios agres
e as mans enfermas de carencias.
Todo o esmalte de obsidiana co que eu o imaxinara nas novelas quenon escribirei nunca
e se lle transparentaban os lirios máis escuros
místicos e ocultos e con pétalos mui ásperos.
Pero andaramos buscándonos polas rúas das mesmas noites
e así foi que veu a ser o meu príncipe das tebras,
eu tremendo de impaciencia baixo os queiros da agonía
para choverlle en sangue fresca e aplacar mórbidas fames.
Agora teño a boca destrozada.
Aspiro despacio a noitebra.
E el canta espido e frío para o pleniluinio vidrado de setembro.
Nunca o loito foi tan branco na súa casa ingobernable.
Unha horizontal vivencia de martelos detrás do lánguido alento,
tal como Aleister camiña en raxadas lívidas
cara a nosa obscura amaceñida.
***
yolanda castaño
*
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