O corpo sobe e desce
embalado de encontro
à gelatina (gordura)
do líquido até se dissolver
na onda de partículas
- a cintilação sem brilho
(glauca) de fluxos invisíveis -
de onde reemerge
como um novo tronco -
as guelras no lugar
das pernas - para
repetir outro ciclo.
Quem o segura?
Tudo se arrasta
no aquário alagado
em que o olhar se adensa,
inclinado para dentro,
deixando-se cobrir
pelo lençol de pregas
- silvos embutidos -
do vídeo movediço.
Tudo mexe em câmara
lenta vídeo distorcido
no viveiro de formas
(carnívoro adormecido)
de onde as imagens
se desprendem
(da agonia do fundo)
ainda irresolvidas.
Mal sai da cápsula
a placa de vidro -
com os seus parafusos
de metal fundido -
agride-o na cabeça,
no ponto em que
o pensamento bate
no fundo e se
extingue o sentido.
Atravessado pela janela
que o lamina pelo cinto
cai para baixo e cima
sem que os dois cotos,
girando sobre si,
cheguem a ocupar
o espaço de ravinas
deixado livre
pelo pesadelo
entre o sólido e o líquido.
Só então a imagem,
quando volta à superfície,
reconhece como sua
a promessa de novos sons -
seres de língua bífida -
que já nada prende
aos limites do conhecido.
***
fernando guerreiro
*
Os mortos vêem com os
olhos dos vivos e os vivos
fecham os olhos como se quisessem
ver o mundo dos mortos pois estão
todos vivendo com o mesmo alento
oblíquo: actores
dum teatro findo, vejo ainda
nele o sentido antigo da vigília
***
gastão cruz
*
«Esperas que te digam que ainda não morreste».
Esto verso naufragou faz tempo no meio de um poema
mau e vejo agora que mereceria melhor sorte.
Retiro-o cuidadosamnete das ruínas
como quem retira do meio dos destroços
um corpo dado à costa numa praia deserta.
Deixo-o ao relento o tempo necessário
para que o sol lhe entre nos pulmões
e lhe beba a água em excesso. Se respirar
uma vez mais, quiçá para seu mal,
ensaiará o passo seguinte, integrando
ossadas de um novo cemitério.
***
fernando de castro branco
duas igrejas, 1959
*
Meu Deus, como compreendo a tua hora,
quando tu, para que ela no espaço se arredondasse,
a voz à tua frente colocaste outrora;
para ti o nada era como uma ferida que não sarasse
e tu refrescaste-a com o mundoi.
Rainer Maria Rilke
[tradução de Maria Teresa Dias Furtado]
qunatos dias teus
estiveram de pousio,
no que foi o terceiro
dia de deus?
quantas sementes
colocaste de infusão
dentro do silo
onde se guarda o tempo?
a quantas árvores
deste o nome da terra?
quantas vezes a cor foi,
na tua mãoi
a prece lavada
do silêncio do mundo?
o lume dos regressos,
esse estrondo de pétala
que põe claridade
na cinza do brilho,
esteve, sempre, dentro
dos teus olhos.
dizer da criação,
nunca te foi estranho,
como nenhum segredo branco
de uma ferida de luz.
que idade tinhas
quando a primeira árvore
te disse para subires?
***
emanuel jorge botelho
*
Não nego que me sinto vencido
pela tua distância,
uma pedra e um pouco de gelo no sangue
uma violeta na primavera desta morte em flor.
A aflição não passa,
ainda que eu permaneça na defnsiva, dia após dia,
na retaguarda do teu afecto.
Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
no teu estojo de ossos? Assim, dizem,
se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
o nervo e a tentação do teu nome.
Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,
mais fácil é dizer apenas... corpo.
***
david teles pereira
*
Amável é esta casa
e há sabores
de uma terra intranquila.
Por aqui brincam os meus textos.
Adultos e sofridos.
Por aqui também andam
as tuas vírgulas de rapariga.
Amável é esta cama.
***
carlos mota de oliveira
lisboa, 1951
*
o gato à janela
a gaivota no telhado
a cidade na cidade
a rapariga no sofá, lendo e
pressentindo sexo
até à décima quinta linha
quem sabe a penúltima vírgula
daquela página daquele livre
daquele dia daquela vida e
todos em coro celebrando
mais um dia dos mortos
***
bénédicte houart
braine-le-conte (bélgica), 1968
*
Jogava comigo na defesa reduto
dos inábeis dos impopulares (abaixo
de nós só o guarda-redes): o Celso e eu
vendo a glória avançada e esperando os embates
entre o medo de sempre e o desejo da acção
heróica redentora. Mas como no amor
cabia-nos menos defender antes ser
repositório de culpas pelos falhanços
colectivos e como um amante traiu-me
quando atrás de não sei que instinto (parecia
doido) subiu à baliza dos outros e
marcou o melhor golo da terceira classe.
***
antónio gregório
*
Por cada verso feito quantas noites
desfeitas e mulheres transfiguradas,
madrugadas, cidades, auto-estradas,
montes de cartas, mortos e ausentes.
Por cada verso feito me despeço
dêste mundo, em pedaços repartido,
pois só consigo reunir-se quando fundo
império de poema nunca escrito.
***
antónio barahona
*
Tal como outros têm por secretária a noite
eu tenho a minha gabardina
de botões desusados e conversas redondas
que vai com os dias de chumbo
e traz filhos ilegítimos como pardais.
Eu e a minha gabardina
formamos uma só e vejam lá que
nos dias de chuva eu molho-me
ela fica enxuta.
A minha gabardina é o meu cão
fiel quando se rasga e mostra um segredo
mapa de meses outros em que nos escondíamos
das luzes excessivamennte denunciadoras
na rua patriarcal.
A minha gabardina é o meu gato
sobranceira aos epítetos de arcaica e
inactual.
«A culpa foi da gabardina»
acusou o amor quando abandonou a casa
doente da minha pele impermeável
às imagens negociadas do desejo.
Hei-de morrer com a minha gabardina
Exo-la como o fato de Joseph Beuys
***
ana paula inácio
*
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