a cidade
tem paredes
rios íngremes
dias possíveis
olhos obscenos
nos seios ao sol
nas pernas ao vento
no sexo inventado
não pergunto
mostra-me
sem que pergunte
surpreende-me
como antigamente
como naquele tempo
em que voavas
sobre o meu ombro
opaco nu
metálico
vem daí
no íntimo
dormimos sentados
no nome
no rosto
no ter dito:
a luz afinal
apodrece
no nome
no rosto
no ter dito:
a mão afinal
embebeda
lembras-te
***
carlos grade
*
continuei a regressar ao lugar onde me habituei a grotar lobo até muito depois
de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do
medo extintas com cobertores e alguma companhia - com uma presença
recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a
dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados
com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a
memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de
catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o
santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua
morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela
e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio.
nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria
uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência
num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.
***
tiago araújo
*
fumegue ou não
na chávena só
se bebe em pe
quenos goles
indicador na asa
mais o polegar
na outra mão
a esta hora
nunca o pão
um bolo cada
gole o acompanha
se insistindo
voltar a encher
mas meia
seria bastante
pode o chá amanhã
desaparecer nesta
casa pouca fal
ta há-de fazer
***
f. josé craveiro
*
Cheios de pânico perdidos os olhos
E noutros olhos de pânico achados
Estou a dizer o grito de vida
Colhido no ventre do medo
Serem as bocas pétalas vermelhas
E não murcharem porque sorriram
Digo dos gestos recíprocos
O símbolo das mãos ligadas
***
pires laranjeira
*
Rozas de vinho! Abri o calice avinhado!
Para que em vosso seio o labio meu se atole:
Beber até cair, bebedo, para o lado!
Quero beber, beber até o ultimo gole!
Rozas de sangue! Abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagae! deixae-as trasbordar!
As ondas como o oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ophelias de luar...
Camelias! Entreabri os labios de Eleonora!
Desabrochae, á lua, a ancia dos vossos calis!
Dá-me o teu genio, dá! ó tulipa de aurora!
E dá-me o teu veneno, ó rubra digitalis...
Papoilas! Descerrae essas boccas vermelhas!
Apagae-me esta sede estonteadora e cruel:
Ó favos rubros! os meus labios são abelhas,
E eu ando a construir meu cortiço de mel...
Rainunculos! Corae minhas faces-de-terra!
Que seja sangue o leite e rubins as opalas!
Tal se vêm pelo campo, em seguida a uma guerra,
Tintos da mesma cor os corações e as balas!...
Chagas de Christo! Abri as petalas chagadas!
N'uma raiva de cor, n'uma erupção de luz!
Escancarae a bocca, ás vermelhas rizadas,
Cancros de Lazaro! Feridas de Jezus...
Flores em braza! Orgaos da cor! Tirava
Operas d'oiro, podesse eu, das vossas teclas.
Volcões de Maio! ungi minha pelle de lava!
Dae-me energia, audacia, ó pequeninos Heclas!
Dae-me do vosso sangue, ó flores! entornae-o
Nas veias do meu corpo estragado e sem cor:
Que vida negra! Foi escripto, á luz do raio,
O triste fado que me deu Nosso Senhor...
Scismo já farto de velar minha alma doente,
Não dura um mez siquer, minhas amigas, vede!
Mas, mal vos vejo, então, pulo alegre e contente
A uivar, como os leões quando os ataca a sede!
Corto o estrellado céu, voo atravez do espaço,
Cruzo o infinito e vou rolar aos pés de Deus,
Como se accaso fosse, em catapultas de aço,
Por um Titan de bronze atirado a esses céus!
Amo o vermelho. Amo-te, ó hostia do sol-posto!
Fascina-me o escarlate. Os meus tedios estanca:
E apezar d'isso, ó cruel hysteria do Gosto,
Certa flor da minh'alma é branca, branca, branca...
***
antónio nobre
*
Era a mulher — a mulher nua e bela,
Sem a impostura inútil do vestido
Era a mulher, cantando ao meu ouvido,
Como se a luz se resumisse nela...
Mulher de seios duros e pequenos
Com uma flor a abrir em cada peito.
Era a mulher com bíblicos acenos
E cada qual para os meus dedos feito.
Era o seu corpo — a sua carne toda.
Era o seu porte, o seu olhar, seus braços:
Luar de noite e manancial de boda,
Boca vermelha de sorrisos lassos.
Era a mulher — a fonte permitida
Por Deus, pelos Poetas, pelo mundo...
Era a mulher e o seu amor fecundo
Dando a nós, homens, o direito à vida!
***
pedro homem de mello
*
Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
***
jorge de sena
*
Ouço o incêndio, as fábricas. O berço
do suor interrupto. Ouço às vezes quem se ama
onde o amor não há – apenas morre
no clandestino abrir.
Ouço às vezes quem rompe os mapas cerce
e então na noite recupera as loucas
emigrações da história. Ouço crescendo
secamente os filhos no rancor e na linfa.
Astuciosamente recolhendo as vastidões adversas.
Ouço em momentos fartos o entulho,
desdobrada a raiz, fundar o mês da heresia,
a sábia recriação do sumo.
Ouço o arado. A luz. Profundamente
os barcos segregados na propensão do mar.
Ainda quem a medo desagregue
a centenária paz:
- os homens,
onde os ouço, aqui recordo
as origens compradas do terror.
Os homens, onde os ouço, aqui confirmo
suas mãos.
***
hélia correia
*
a noite cai em riste
sobre o corpo suspenso
do palhaço - ancorado,
preso por um fio
à luz morna que lhe projecta
na madeira a sombra frágil.
Os seus olhos fechados,
onde viveu já o rumo
alado do trapezista
antes de ver o mundo
do ponto de vista da queda,
abrigam agora o riso
emprestado à burlesca
tragédia de se estar vivo.
***
renata correia botelho
*
Os papéis falam uns com os outros
Sobre esta mesa onde a sombra cai
A lâmpada esquecida tem remorsos
Da luz que antes lhe deu que se esvai.
Nas paredes que antes quadros coloriram
Sobre papel sedoso de ramagens
Ecoam dias em que vozes riram
Jarras de cristal com flores selvagens.
Já partidos os vidros nas janelas
A glicínia sobre os muros sinuosa
Conforme o sol ondula se reclina
Ervas crescem no jardim por elas
Pois já nenhuma mão colhe sua rosa.
Tudo se abandona a ser em ruína.
***
bernardo pinto de almeida
*
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