A árvore da sombra
tem as folhas nuas
como a própria árvore ao meio-dia
quando se finca à terra
e espera
como um cão espera o regresso do dono.
Nós abrigamo-nos mais tarde ou mesmo agora num lugar
muito distante
onde o tempo recorta
um tapete que esvoaça no papel.
A casa da sombra
é branca e habitada.
Somos nós ainda
sentados ao fogo que o teu sorriso
acende e aconchega
no silêncio que ilumina
a árvore da sombra
para que a noite desenhe
o seu nome visível
e a sombra possa contemplar
os ramos mais belos e o tronco mais esguio
do seu objecto.
Nesta sombra há um imenso amor
ao meio-dia.
A hora dos prodígios
é feita de segundos do tempo que há-de vir
e o horizonte
é a proximidade total da tua boca.
***
rosa alice branco
*
Na fome verde das searas roxas
passeava sorrindo Catarina.
Na fome verde das searas roxas
ai a papoula cresce na campina!
Na fome roxa das searas negras
que levas, Catarina, em tua fronte?
Na fome roxa das searas negras
ai devoravam os corvos o horizonte!
Na fome negra das searas rubras
ai da papoula, ai de Catarina!
Na fome negra das searas rubras
trinta balas gritaram na campina.
Trinta balas
te mataram a fome, Catarina.
***
papiniano carlos
*
Por que andas tu mal commigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!
Quando entre as mais raparigas
Vaes cantando entre as searas,
Eu choro ao ouvir-te as cantigas
Que cantas nas noutes claras!
Os que andam na descamisa
Gabam a violla tua,
Que, ás vezes, ouço na brisa
Pelos serenos da lua.
E fallam com tristes vozes
Do teu amor singular
Áquella casa onde cozes,
Com varanda para o mar.
Por isso nada me medra,
Ando curvado e sombrio!
Quem me dera ser a pedra
Em que tu lavas no rio!
E andar comtigo, ó meu pomo,
Exposto ás chuvas e aos soes!
E uma noute morrer como
Se morrem os rouxinoes!
Morrer chorando, n'um choro
Que mais as magoas consolla,
Levando só o thesouro
Da nossa triste violla!
Por que andas tu mal commigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!
***
gomes leal
*
ainda o lacre cor de sangue de bovino; a henna nas unhas das mulheres (um cão)
a rua sunmersa pela noite do Rif traz sempre o teu cheiro (arromba portas)
levanta as folhas do chão e planta árvores ao longo do meu caminho de regresso
("nunca se contam histórias sem mentir um pouco"); já de costas voltadas
a tua voz regressa de todas as partes do céu: maquilhada de simpatia e pudor
uma vermelha torrente de silêncios - as bancas expondo cabeças de carneiros
(e seus corações)
a espera pela muito demorado correio enviado por mim para este lugar
como a pele da cabra abandonada no chão (acabada de abater)
e odores de almíscar (a Teogonia pousada e a mostarda a colar-se-me aos olhos)
as mãos demasiado bem tratadas ante meus calcanhares fendidos
ali vendedores de uma felicidade sempiterna no coração e no retiro das virilhas;
circulam desde a memória da tua imagem: lambretas de escape solto - o atropelamento
abro os olhos e a gasolina incendeia-se por todo o meu corpo e pela traqueia abaixo
enquanto te vejo chegar nua pintada de um azul majorelle entre a cintura e o umbigo
tudo sob uma água de anel e índigo (que te levarei por prenda no meu silêncio)
a caixa de rapé - escolhida entre as demais por seus signos berberes
irá também empacotada; no malão, a demasiada roupa (que regressará limpa)
uma melopeia à beira dos caminhos (não te encontrei em curva alguma;
nem na esquina da Rue des Souks) porque chove na praça - agora vazia
na charuteira de cabedal as minhas canetas, os lápis e um termómetro sem préstimo
O Rio do Céu a prometer para a tarde de amanhã O Caminho de Santiago - um cão
o verde inteiro da margem a derreter-se dos teus olhos para os espaços fechados;
agradeço a Deus por mais este dia: não te vi no teu lugar (de cinzas) sexta-feira
um cão morto na berma da estrada: escarlate e azul nas esvaziadas miudezas
("nota que os trazem limpos os calcanhares são os que mais rezam")
o quarto vazio onde ainda assim nos descalçávamos - o teu pescoço arranhado;
oxalá irei (só eu) pelo deserto pisando as areias que (ainda) te arrepiam os pés;
uma oração por cabeça: já o cão ao ombro do pastor num alforge da cor dos teus olhos
***
alexandre sarrazola
coimbra, 1970
*
Meu país desgraçado!...
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas ...
Meu país desgraçado!...
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?
Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.
E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.
Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!
Povo anêmico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam
***
sebastião da gama
*
Todo esse vosso esforço é vão, amigos:
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais, já desisti de quaisquer portos;
Não peço a vossa esmola de mendigos.
O mesmo vos direi, sonhos antigos
De amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
Que fostes o melhor dos meus pascigos!
E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo e todos vejo reduzidos,
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.
Para reaver, porém, todo o Universo,
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....
Basta-me o gesto de contar um verso.
***
josé régio
*
Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
***
albano martins
*
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
***
josé luis peixoto
*
Para o Tiago
Tudo o que não é literatura aborrece-me -
queixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha -
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso.
Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não levantes a mão.
Vem, vem apenas,
come as you are
- embora seja tarde.
Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e vozes molhadas em tabaco.
Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantavam as saias à história.
Já tirámos os cavalos,
já limpámos as trincheiras.
Vem ralar na minha pele arrepiada
a cor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.
Vem sem falta -
o palco está vazio,
a sala cheia.
Com o passo lento das derrotas,
um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á ao último acto.
***
golgona anghel
alexandria (roménia), 1979
*
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