Están estas memorias
de gata enferma,
las persianas sucias y manchitas de sangre en el espejo del baño.
La mujer hincada frente a una enorme ventana
que da a la calle de abajo,
la tele prendida
y luces intermitentes
que traen y se llevan una sombra.
Está la poetita desnuda
con todos sus defectos cotidianos,
alquilando su muerte
a un posible fantasma
que la aguarda.
Está la orilla de la sombra
en su punto intransigente
y dibujado en la puerta
un péndulo incontenible
de rebelión que no se pudo.
Si no fuera porque te conozco
habría un filo de navaja en el suelo
o una cuerda colgando del horror.
***
alejandra castro
costa rica, 1974
*
Há estas memórias
de gata doente,
as persianas sujas
e pequenas manchas de sangue
no espelho do lavatório.
A mulher depositada
diante de uma enorme janela
que dá para a rua de baixo,
a tele-prisão
e luzes intermitentes
que chegam e levam uma sombra.
Há a pequena poeta nua
com todos os seus defeitos quotidianos,
alugando a sua morte
a um possível fantasma
que a espera.
Há a margem da sombra
no seu ponto intransigente
e desenhado na porta
um pêndulo imparável
de rebelião que não se consegue.
Se não fosse por te conhecer
haveria um fio de navalha no chão
ou uma forca pendurada no horro
[trad: aam]
No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
***
ruy belo
s. joão da ribeira, 1933 - 1978
*
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
As mesas espelhentas do Martinho.
***
cesário verde
lisboa, 1855 - 1886
*
Iludir os alarmes,
as câmaras de segurança,
a paranóia infravermelha.
Entrar com os pés descalços,
avançando rente ao solo,
o coração no sítio certo.
Não ter pressa, fugir só
no último segundo, nunca
pela saída da emergência.
***
josé mário silva
paris, 1972
*
o avô cavernoso
instituiu a chuva
Ratificou a demora
Persignou-se
Ninguém o chora agora
Perfumou-se
Vinte mil léguas de virgens vieram
Inúteis e despidas
Flores de malva
E a boina bem segura
Sobre a calva
Ao avô cavernoso quem viu a tonsura?
E a tenda dos milagres e a privada?
Na tenda que foi nítida conjura
As flores de malva murcham devagar
Devagar
Até que se ouvem gritos matinados
***
josé afonso
aveiro, 1929 - 1987
*
Porque escondes a noite no teu ventre?
Nesse país de sombra onde se calam as palavras.
Aí, no escuro lago onde estremece a flor da amendoeira
e onde vão morrer todos os cisnes.
Eu desvendo a tua dor, o teu mistério
de caminhares assim calada e triste,
quando viajo em ti com as mãos nuas e o coração louco
no mais fundo de ti, onde só tu existes.
Oh, eu percorro as tuas coxas devagar
dobrando-as lentamente contra o peito
e penetro em delírio a tua noite
esporeando éguas no teu sangue.
***
joaquim pessoa
barreiro, 1948
*
Que matança receber-vos. E desmemória: pensava-vos mais castrejos, menos pululantes às comidas. Desapareceram-me recentemente dois seres, assim vos trespasso como transparentes. Consumo ainda algumas regressões para manter certo emprego.
As onanotecnologias encontraram no meu corpo um recipiente perfeito.
Não sou dada. Ide. O atelier do transtorno é a última porta à direita.
Que de baloiços, cavalinhos, almofadas, escorregas, posso deixar. É como se tivesse praticado a lei das sesmarias, que de bem me sinto.
Comam esse bolo-cadáver.
***
alberto augusto miranda
vila real, 1956
lucia aldao
a coruña, 1982
a porta roda ao invés da lua
a porta roda bússula enterrada ao invés dos olhos
a porta geme é um cão nocturno
a porta geme extinta na trela da noite
a porta areia
a porta caruncho pária de mar
a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha
a porta com máscara de morte
a porta sem sorte
a porta joelho na alma das portas
a porta mulher da casa de passe
a porta manchou a manhã com o grito de porta
a porta enforcada no mastro da casa
a porta por asa
a porta roda
a porta sexo a vida toda
a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas
a porta pregada
a porta leilão
a porta batente a porta aranha por coração
a porta tu
a porta eu
a porta ninguém na terra pequena
a porta roda
a porta geme
a porta facho
a porta leme
***
luísa neto jorge
lisboa, 1939 - 1989
*
Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí me espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
***
natália correia
fajã de baixo - s. miguel, 1923 - 1993
*
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