Olhar o rio que é do tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemoscomo o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa a morte
De cada noite, que se chama sono.
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. a poesia
Volta como aurora e o ocaso.
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
***
jorge luis borges
buenos aires, 1899 -1986
[trad. ruy belo]
*************************
ch...
chiu
cheira a ch...
cheiro café Ah! cheira a
ssssuor sabor
cheira a sssabão
ch... Torrar Torrões Torrada Terra
vermelha e cor de café
Cheira a goivos, a café com leite, a manhã cedo, a laranjas no ar,
ch...
heira a menina avó nova velha mão coração
Cheira a pão e a sss sangue novo
óleo, montanha, vale
levantar e cair.
Transborda
longe e perto
Cheira a m mm mmmulher
Cheira a m mm mmmulher
ss__ sede
sss__ segredo
sss__ sopro
ssss__ sexo
sssss__ silêncio
ssssss_ só
sssssss_ sussurro
essência baloiço num embalo
um céu cheio de aromas
ch... chiu ch...
sss__ som
sss__ soa
Arfando num bafo quente
esta cidade está cheia de cheiros!
***
cristina benedita
algés, 1966
*********************
Magro, de olhos azuis, carão moreno
Bem servido de pés, meão n'altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto ao meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
***
bocage
setúbal, 1765 - 1805
**********************
O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja pra casar
O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio
O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino
O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vendo música raparigas em cabelo
feira das sextas-feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e foi belo
mas o tempo a puco e puco arrefeceu
O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida pra o liceu
Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?
O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem a luz na fronte
fica no norte e é vila do conde
ruy belo
s. joão da ribeira (rio maior), 1933- 1979
*********************
Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
***
sophia de mello breyner andresen
porto, 1919 - 2004
*****
Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca a síntese da flor
que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanta gesto de colher e amar
a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,
verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.
***
carlos drummond de andrade
itabira de mato dentro, 1902 - 1987
********************************
Amanhã
quando acordares sem mim
talvez te sintas livre
.........................feliz
.........................independente
E depois-depois
na hora em que acordares
(sem mim)
eu estarei lá
sentada no parapeito do teu desespero
a sorrir cinicamente
e a dizer bom-dia!
***
manuela amaral
lisboa, 1934-1995
*******************
Cozer um ovo:
êxtase maior.
Os minutos de cor:
um desafio.
E a cor
que a casca ganha
tão gratuita
e bela
desfaz-se perante
a gema,
monótona, amarela
quando o real
invade
e se estilhaçam luzes
da cozinha
***
ana luísa amaral
lisboa, 1956
******************
Da Mafalda estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segregado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida
***
sebastião alba
azeitão, 1924 - 1952
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