Um cavalo corre no campo cerebral de Muybridge
que captura suas articulações
por não aguentar a efemeridade do seu galope
congelando o movimento primórdio do animal
tecno-cientificamente classificado
como um eqüino imortalizado
Muybridge
a fim de descobrir a lógica no místico
eternizou o fascínio na luz da razão
a mesma razão que o enganou
quando apertou o gatilho da espingarda
contra o amante de sua mulher
como se além de ter capturado o corpo físico
tivesse guardado também
o instinto do objeto fotografado
cuja natureza era demasiado forte
para o seu intelecto visionário
de homem duplamente traído.
***
camila vardarac
(rio de Janeiro, 1987)
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Habito nestes livros de poesia por engano,
eu não pertenço à floresta
onde se inventou o fogo
e se troça dos deuses obscuros
domesticando a sílaba dos cavalos
nocturnos
que enrolam as líticas patas do bronze
para além da boca das chuvas,
nada mais desfruto do que a cabeça do tempo,
aí cavo a lucidez dos olhos
da meretriz dos rumores sangrentos
a finitude visceral na injunção do gáudio
em que as mães se extinguem
consanguíneas
sob a abismada ortografia da água
tragando o contágio dos precipícios,
enxerga como o coração fica sombrio e áspero,
o insaciável tacto da separação fervilha
entre livros e coração
o leilão do amor que apazigua a aporia da dor
buscando outra flor outra memória
inominável
a acerba tinta, sangue e corpo
entre formas vulgares e distintas de amar,
e não podendo guardar todas as promessas
sacrificar-me-ei como o cordeiro
em base de alabastro sagrado
com meus ais de guelras inclinadas
sob a inexequível amplitude do verbo
entre a metáfora do relâmpago,
pois livros e mães jazerão então inaudíveis
em sua feroz melancolia
tresmalhados nos seios da tempestade
como sulfurosa fragrância de infindas concubinas.
***
joão rasteiro
(coimbra, 1965)
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a peinar la baleta, que lhebante la mano
nun saludo arrincado a l'aba de l chapeu.
***
amadeu ferreira
(sendin, 1950)
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Parte de mim está vestida a rigor para o diálogo
e leva rosas na lapela e supernovas no epitélio
lingual e chocolates na mansidão para a sua amada.
A outra parte recebe estes presentes todos
ao pormenor no conforto de sua casa.
Depois escreve uma carta que a primeira parte
não pode nem ousa decifrar.
A primeira parte de mim parte-se em bocados e chora,
e o choro mancha-lhe a elegância, murcha-lhe as rosas,
apaga-lhe as supernovas e desmancha os chocolates.
Uma vez nua e consternada, a minha primeira parte
resolve mais uma vez contra-atacar
e usar a sua nudez e a sua consternação
a favor do bem comum e da lógica indivisa das galáxias
mas a minha outra parte e o seu universo continuam
em contracção e eu, aproveitando o intervalo
e o debate aceso entre o governo e a oposição,
tomo o partido do que está a mais
e um comprimido da classe dos inevitáveis
e vou-me deitar.
***
andré domingues
(porto, 1975)
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Seria um pássaro
No sono das asas
ondulava
toda a solidão do céu
Terrestre,
só a fugitiva sombra
Paisagem nenhuma
lhe dava abrigo
Pousado,
o corpo
de si mesmo exilava
Nos ensinava
a deslumbrância da viagem
a nós que só na morte
olharemos os céus de frente
***
mia couto
(beira, 1955)
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Vamos fazer de conta que foi tudo
mero fruto da nossa solidão
e o planeta rodou solene e mudo
na ignorância de sermos ou não
ousados cavaleiros do momento
a galope no próprio pensamento.
Vamos fazer de conta que chegámos
de outra galáxia ou outro continente
e alheios e temerários ancorámos
no cais erguido algures contra a corrente
de ideias feitas, modas, preconceitos
e mais normas e regras e preceitos.
Vamos fazer de conta que surgimos
do nada para o nada desta hora
e olhando à nossa volta sem demora
soubemos que afinal não existimos.
***
torquato da luz
(silves, 1943)
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Já não leio versos, digo, livros
escrevo o que vem com o hálito da espuma
um sinal vindo de terra que movimenta o espaço
constrói na boca um vocábulo de ar por cima
um não falar de coisa alguma mas o que está por baixo
e no entanto há um pássaro na língua que adeja numa asa azul
versos são sementes plantadas em hortos de chumbo
livros, frutos apodrecidos em alheias mãos
sou ave extrema que humilha o céu no chão
***
maria azenha
(coimbra, 1945)
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Pois o tempo não pára, nem importa
Que vividos os dias se aproximem
O copo de água amarga colocado
Onde a sede da vida se exaspera.
Não contemos os dias que passaram:
Hoje foi que nascemos. Só agora
A vida começou, e, longe ainda,
Pode a morte cansar à nossa espera.
***
josé saramago
(golegã, 1922 - 2010)
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