São estes os lugares. Não evocam bosques
nem segredos, não chegam a cobrir
o passado com a crosta de uma sombra -
rasgo a boca e o gosto da lama
espalha-se. No entanto, dobra sem
porquê, retorno sempre a estes espelhos
marcados por dedos crespusculares,
às frias ruas de Novembro, à praia onde
trocámos por um cachecol a primeira traição,
ao fim da noite no descampado,
ao asfalto molhado do coração, a portas
onde o desejo bateu para não morrer.
São os nossos lugares. Como nosso é
o ardor na garganta pela manhã, a radiação
da veia a latejar, uma lasca de madeira
entre a carne e o osso, a visão do avô
paterno, numa fotografia, a cavalo,
a súbita amputação das pernas, a terra perdida,
o tanque vazio da quinta, a blusa que sobrou
de um corpo, lugares onde é mais liso o arco
da dor e o pensamento se fere, silencioso, como um bicho.
Por eles volto a acreditar na escuridão e na luz.
***
luís filipe parrado
(seixal, 1968)
*****************************
Ao desobediente sorriso da figueira
o gato mostrou melancolia às riscas.
***
luís serra
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Repetir os nomes das árvores:
olaia, bétula, negrilho, alfarrobeira;
a cerejeira do fundo dos muros e os admiráveis
brincos da infância; o carvalho negral
e as folhas ténues trazendo às colinas
os primeiros meses de Abril.
Dizer em voz alta os nomes
dos lugares onde parece
que o mundo se suspendeu
para que pudéssemos regressar
à água e ao lume, à terra
e ao éter e à varanda incandescente
das tardes de Verão: Gardunho
e Segirei, Cacela, Voluntário, Vilarinho
Seco. Roubar à caligrafia
os nomes da manhã acabada de nascer:
nuvem onde poisamos as mãos.
***
josé carlos barros
(boticas, 1963)
************************
Os poemas têm veneno na boca
Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.
Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.
Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.
São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.
***
isabel de sá
(esmoriz, 1951)
***************
chama-se marília
está de costas e não ouve o que penso.
a esta distância, poderia matá-la.
o seu cabelo, diz-se,
é como as crinas de um cavalo em fuga.
encolhida como está, não o vejo.
digo o seu nome para que se volte,
a minha voz solta.
subindo de tom entre sílabas,
antecipando o voo circular de aves pretas,
a resolução do seu olhar para esta noite,
a definição geral da vida,
ou a expliucação só deste momento,
mas não se volta.
descalça-se e começa a despir-se
mecanicamente,
concentrada na sua tarefa,
fria, profissional,
facilmente se vê que é competente,
indiferente a quem está atrás de si,
ou ao efeito da sua pele exposta,
como quem diz: beija-me,
ao mesmo tempo que diz: bate-me,
uma mulher pronta a usar,
que sabe ser observada e desejada,
molha os dedos num copo de água
para se humedecer e,
sempre de costas,
oferece-me as nádegas.
***
alice macedo campos
(penafiel, 1978)
*******************
Enquanto baloiçam os acordes da misericórdia
olho a má companhia em que nos tornámos
presos ao passar das folhas
a cheirar o fundo das palavras
ou à espera de objectos brancos
que só podem existir à noite
Billy Budd enforcado, o bem natural
apanhado na gordura da pele
os quevivem
fumam debaixo do derradeiro cipreste
ninguém desconfia
falamos pouco, expiamos pelo nariz
e pelo menos um de nós
não vao cumprir o que prometeu
***
joão almeida
*********************
aglomerada infracção segundo breu
amplificada imensidade turva absoluta
ocupa o vácuo com metais de presença
durmo escurecido nalguns cliques e flashes
quando nisto acoplam objectos no anexo.
Erguido dos imaginários sob reposicionados,
Hércules analisa as viabilidades estacionadas
no parque das inspiradas estruturas submersas.
Mais uma contra-ordenação temporal excessiva.
Irrupções de sirenes atazanantes das profundezas
provenientes das fartas grandezas expectoradas
pelo pequeno elemento boreal de sinal ilustrado
no almanaque ficções frustradas nas frestas diurnas
desassossegam a urna no ponto triplo asséptico
decepando o alvoroço da ligação infra-celeste.
Corte de rompante a conexão corrupta a sabre
solucionador injectado de lazer sensitivo
extrai plasma depressivamente contrabandeado
físico ancorado a supercríticos fluidos activos.
Impressões invadidas nas lentes telescópicas
e na celeridade do saque de pasteis de magma.
Nebulosa torrada barrada solipsisticamente
impressionista impressionado com o torpor
dos florescentes contemporâneos néones
tons e corantes ultravioletas esclarecedores
tratavam da secagem de fatos emulsionados
via palma da mão vazia porque tanto fazia
de salteadora paradoxa animal num filme
capturava neutros infinitamente distantes
foi neutralizada fotograficamente por civis
condes e anãs castanhas detidas a meias
passadas apanhadas em flamejante delírio
estado massivo de super novidade cicatriz
da florescente floresta duplamente desejada
por ares expandidos de quasares exilados
depois deportada pela penalidade mínima
e trovas falsas irracionalmente abatidas.
Declarado alerta na transmissão sideral
nos batidos de satélites abandonados.
***
sacha habermann
(krefeld - germany, 1967)
**************************
Todos os dias
meto a cabeça
na boca
do crocodilo
O meu feito é feito
de paciência
Já meti
a cabeça
no forno
estava farta
dos crocodilos
e dos amantes
Não tenho tido amantes
tenho tido crocodilos
Com os crocodilos
ganho o pão
e as rosas
Morrer é um truque
como tudo o mais
Dobrada
entre os crocodilos
dobrados
arrisco a pele
A pele é a alma
***
adília lopes
(lisboa, 1960)
*************************
Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.
Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.
***
a. m. pires cabral
(chacim - macedo de cavaleiros, 1941)
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Pego numa vara e desenho à minha volta
com a dimensão dos meus braços um círculo no solo.
Dentro apenas uma areia escura, muito fina,
um pó perdido e inerte,
que enegrece os meus pés.
Pedras soltas, poucas. Mais nada.
Olho o círculo, trezentos e sessenta graus de país
com o tamanho dos meus braços
e o poema é apenas uma memória.
Adormeço em pé durante meses, fixo nestes ossos.
Cabe alguém nesta ilha?
Choro a tua partida como um continente
que chora o soltar de uma porção de terra,
de uma nascente ilha em direcção ao horizonte,
e espero neste ponto móvel que dês a volta ao mundo.
Deixo cair a túnica, a única coisa que me cobria.
Levanta-se um sopro, uma nuvem sobre quem eu sou,
uma rouquidão crescendo aos poucos na minha voz.
O meu corpo cobre-se de algas.
A meio da noite escura solto um grito,
o sal secou sobre a minha pele, volto a vestir a túnica,
cubro a cabeça com o capuz,
pego na vara e continuo a desenhar coisas estranhas
nesta areia até o sol nascer
***
luís brito pedroso
(lisboa, 1977)
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