Comecei a fumar para te pedir lume.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.
Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
o café fechou as portas. Para sempre.
***
ana salomé
*******************
Há um espaço
Que as estátuas celebram
Com rumores
Frias conjecturas se deslocam
Dos seus rostos de mármore
Para os campos desertos
Impérios desmoronam
Nos seus gestos hábeis
Vestem trajes de linho
Que o vento desfaz
E tocam a terra
Húmida
Matam por desfaçatez
E constroem sobre o sol
Um trono de mágoa
Cavaleiros do império
Que acabam em estátuas
***
rui carlos souto
**********************
Não enxergas. Quer dizer, olhas para isto e não vês
nada. Em rigor a manhã só desperta com o gesto
de um miúdo. Estender o braço e fazer pontaria.
Há quanto tempo está ali, a observar-te?
À volta de toda a praça, o grande carrossel gira,
o grande ciclo da vida, a morte e o renascimento.
Vozes desconhecidas ecoam por todo o lado, palavras
que se transmitem de uma geração para outra.
Pois bem, o balanço do mar largo continua.
Não te deixes enganar pela harmonia da calçada.
Hoje é dia das mentiras, és capaz de ter razão.
***
vítor nogueira
(vila real, 1966)
************************
encosto a face à parede
mais triste do quarto, fiel
guardiã do sol posto.
o coração que me deixaste
é uma casa difícil de habitar.
***
renata correia botelho
(s. miguel - açores, 1977)
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esta manhã na foz, onde eu nasci, o mar da cor do chumbo
rugia contra o molhe, acometia o gilreu exasperado
e era um bulcão de espuma pardacenta a tresmalhar-se nos rochedos.
ouviam-se os pios das gaivotas assustadas, os pios,
os pios no seu voo desconjuntado no sibilar do vento, rasgão de asas
sobre a praia, praia triste como as de augusto gomes,
as das mulheres sobre a areia lisa de cinza, vestidas de negro
no seu trabalho de luto, na sua esperança sem alento,
mas ali não chegam aos baldões pescadores do mar alto, não,
ali, um par despede-se e é para sempre,
os olhos rasos de água e as mãos a desprenderem-se
num mundo pardacento onde morreu o desejo
e ninguém já quer nada de ninguém.
e tu, ó meu amor, não podias gostar disto, desta braveza assanhada,
desta pérgola que vem da minha infância,
onde agora não passa ninguém, desta orla das horas
sem socorros a náufragos, destas águas enfurecidas
onde só há lugar certo para os afogados.
***
vasco graça moura
(porto, 1942)
**********************
ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário,
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.
***
tiago araújo
*****************
com um cão em cada dedo
as minhas mãos continuam à espera
de um poema que me leve daqui
era bom caminhar dentro do fumo
acender um cigarro e ser o próprio sopro
erguer-me do outro lado do meu corpo
gostava de me transformar numa palavra
não importa a ferida que possa causar
quando acontece um rosto por acaso
***
alice macedo campos
(penafiel, 1978)
************************
Sempre lhe é possível
olhar-te de outra forma.
Vê como se inclina,
como toma a pressa de um café
na bancada quase suja,
como corre para teu olhar
na esperança da ignorância.
Quem és tu?
Houve um momento
em que quase estiveste aqui,
quando o sol fez janelas
no reflexo do teu relógio.
Fala devagar.
Pronuncia cada palavra,
ambíguo
fazendo banalidades
com música de judeu,
fazendo circo, trapézios
no desleixo do teu cabelo.
Ignoras essse que te contempla
no canto do olho, sereno,
enredado no seu novelo,
gato por brincar contigo.
***
pedro braga falcão
*************************
Escorregando pela cauda dos cometas,
a Terra sente-se viúva, queria ser outra,
estrebuchando como peixe em rede de estrelas.
Nós queríamos sair de nós, outros,
em queda desde a mais remota antiguidade,
das entranhas, pelos forros dos telhados.
***
paulo teixeira
(maputo - moçambique, 1962)
*********************
É o nome que me ocorre,
sempre que regresso
e vejo de novo crescerem
as ondas do mar, em Gaia.
Há barcos que gostamos de perder,
que partem devagar para outras mortes
e nos deixam juntos, sem palavras.
***
manuel de freitas
(vale de santarém, 1972)
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