Descanse de quando em quando…
Passar assim toda a tarde
Sempre bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena! Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?…
Descanse de quando em quando…
Erga os olhos do bordado
E veja quem vai passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão aturado,
- Não lhe faz bem, certamente;
Erga a carinha tranquila,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços da vila
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo.
- E todos de olhos em si…
Descanse de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é tempo de ir pensando
Em casar. Não é assim?…
Se não lhe agrada nenhum,
- Diga se gosta de mim.
Desde os começos do Outono
Que eu a trago no sentido,
Não como, não tenho sono,
Tudo me dá ralação.
Quer-me para seu marido?
- Diga que sim ou que não…
***
Augusto Gil (1873 - 1929)
Porto (Portugal)
Painel |
Num cerro do Marão Estranha luz meus olhos deslumbrou; E em corpo de lembrança divaguei Além dos horizontes, E toda a pátria terra percorri, E o mar e o céu azul, Onde os anjos da velha Lusitânia Voam como através da nossa fantasia. Vejo campos elíseos de verdura, Serras azuis de infinda suavidade; E a serra do Gerês, Com os seus altos baluartes esculpidos A pancadas de chuva e de granizo E a golpes de relâmpagos. Vejo rios dormentes, Misteriosos vales, que se alargam Em cultivadas várzeas; Ovelhinhas pastando em místicos outeiros E pastores tangendo a flauta do deus Pã; Meda de palha nos eirados, Velhas choupanas que fumegam; Sobre o quinteiro, à porta, uma ramada verde, E, mais em baixo, num recanto escuro, Uma bica de pedra a deitar água fresca Num cântaro de barro. E em lugares sinistros, Que o medo despovoa, Arruinados solares, onde habitam Fantasmas e corujas, quando a Lua Derrama, na solidão extática das noites, Não sei que frio alvor e que tristeza de alma. Praias de espuma e névoa, incêndios de oiro, à tarde, Entre pinhais, fugindo, desgrenhados, Na direcção do vento... E cidades, vivendo protegidas Por santos tutelares: Viana e Santa Luzia e Braga e o Bom Jesus, E Guimarães aos pés dum Pio IX em pedra, Católica e Romana. E o Porto de Herculano, Como Lisboa é de Garrett. Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura, Sobre os abruptos alcantis do Douro; Esse rio que vem de longe, solitário, Cobrir-se de asas brancas de navios E de negros canudos de vapores. Encostados aos cais, depõem a férrea carga. Outros, vão demandando a barra e o farolim, Que dá uma luz - tão triste! - em noites invernosas. Distante, no poente, esfuma-se uma nódoa Em verdes tons fluídos que palpitam Numa névoa indecisa, vaga imagem Da tristeza do mar pintada em nossos olhos. Teixeira de Pascoaes Obras Completas |
O que sou eu? – O Perfume,
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.
Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.
***
Ricardo Reis
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar ewm nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
***
Alberto Caeiro
Apontamento |
|
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio? Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária. Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali. Álvaro de Campos, 1929 |
Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!
A poesia não é voz – é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho da cada um, a expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
***
Adolfo Casais Monteiro (1908 - 1972)
Porto (Portugal)
Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.
***
Ruy Cinatti (1915-1986)
Londres
As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.
***
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)
Belém do Pará (Brasil)
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