Não se me dava que daqui a bocado,
pela manhã, me telefonasses e,
ignorando-me a voz de sonho errado,
dissesses devagar "gosto de ti"
E me acordasse o toque de telefone:
relâmpago de som, eléctrico, ou
eu, como orfeu, ouvindo o gramofone
que eurídice, a velhaca, lhe deixou
Muito mais bom que orfeu seria a tua
voz a romãs (ou figos, ou amoras),
daqui a unha ínfima de lua,
ou seja, mais ou menos quatro horas
É que não se me dava, let alone
ter que estender a minha mão e com
ela pegar em ti ao telefone
e ouvir "gosto de ti", era bem bom
Ma esse sonho fica-se no meu
desejo a nada, e nem o telefone
me soa a teu futuro. Vem, Orfeu,
trá-la de volta...
Ou traz o gramofone -
***
Ana Luísa Amaral (1956)
Lisboa (Portugal)
Trazia a novidade de não ter medo
de descer a rua e atravessar a sombra
dos prédios atirada como arma
de granito, como festejo de civilização.
Perdera subitamente o medo do seu século,
do século que se vivia naquela rua
onde alguns se morriam à injecção,
do século das luzes dos seus vizinhos
a apagarem-se ao mesmo tempo
sem nunca terem trocado nada que não
essa distância de garagem, essa coincidência
dos horários civilizacionais.
Trazia a consciência de ser europeia
(África doera-lhe nos olhos como holofotes)
e de não querer escrever sobre esse assunto.
mas não ter medo de apagar sozinha a luz àquela hora,
não ter medo de nunca estacionar o carro na garagem
e de estar por isso sempre mais só do que os vizinhos,
pensava,
era suficientemente novo
para o poema.
***
Filipa Leal (1979)
Porto (Portugal)
mulher a fazer vento espantada
da falta do mesmo
assim não se pranteando
em ligeiros indícios com a mão lenta
e um pé semovente um pouco à frente
do que antes
ter uma fé em suave detérmino
devagar abandonando abandonos
finíssima brisa nascendo em si
sobrecalando rugidos, pancadas em rumor, gritos
por detrás de onde a vemos sair agora
em todos os lados o luar se faz divino
sopro.
***
Alberto Augusto Miranda (1956)
Vila Real (Portugal)
Um pouco mais de paciência, serei breve
ainda um pouco mais, serei tudo
a quem a causa deste tumulo
agradeço, agradeço, ao de leve
não por enquanto, que é só fingimento
de quem por mim isto escreve
nem com isso, por ora, me atormento
que enquanto o nada me serve
está longe aqui o pensamento
nem a ausência sinto, por vezes…
não, não minto; ou consolam os revezes
de outra gente. Espero o tempo
em que de novo e breve
alguém por mim aqui esteve.
***
Helga Moreira (1950)
Guarda (Portugal)
Demão depois da lixa, zarcão e betume na madeira, a sonoridade
da tinta nas passagens em que deixei que os crisântemos que
se interpunham fossem mais do verso que os espelhasse. Li até
escurecer os olhos. Abandonado, vale dizer.
Para uns, ainda, a poesia não dispensa
que o autor nas horas certas contemple as flores de papel. Era
assim pacientemente a florescência de um verso crescia no
canteiro. Eu, no toucador, agora debruçado escrevo
vírgulas que, de algum modo, dificultam pelo esforço da repetição
o andar da tarde. E o entardecer deixa que, na dobra das
nuvens, toque o canto rouco que escreve sem balbucios a única
página celeste folheada.
***
José Emílio - Nelson (1948)
Espinho (Portugal)
falo-te de chuva como quem diz que as minhas mãos não se exaltam em revisitar-te o peito revejo todos os verdes no peppermint do meu cálice enquanto a janela abro pouco depressa sobre a tarde falo-te de cansaço como quem se sentasse numa poltrona de lã *** Daniel Maia-Pinto Rodrigues (1960 ) Porto (Portugal)
Ó São João, São João,
meu santinho marinheiro,
Leva-me na tua barca
Lá para o Rio de Janeiro.
Pega lá nesta viola,
Toca nela com paixão,
Como tocava meu pai
Nas noites de S. João.
S. João quer fazer casa,
É pobre, não tem dinheiro.
Fazei casa, S. João,
Que eu serei vosso pedreiro.
São João, p'ra ver as moças,
Fez uma fonte de prata;
As moças não vão à fonte,
S. João todo se mata.
S. João comprou um burro
P'ra ir pular as fogueiras;
Depois de as bem ter pulado
Deu-lo de presente às freiras.
- Ó meu S. João da Ponte,
Que tendes na mão fechada?
- A virtude das donzelas
Que por Deus foi despachada.
S. João adormeceu
Debaixo da laranjeira,
Caiu-lhe uma flor em cima
S. João tão bem que cheira.
***
selecção e organização de
José Fanha e José Jorge Letria
St.º António é o meu pai,
S. Francisco meu irmão;
Os anjos são meus parentes,
Mas que linda geração.
A minha avó tem lá em casa
Um St.º António velhinho,
Em as moças não me querendo,
Dou pancadas no santinho.
St.º António de Lisboa,
Diz-se que és casamenteiro;
Fora isso coisa boa
Não ficavas tu solteiro!
St.º António, meu santinho,
nunca foi alcoviteiro;
Põe os noivos a caminho
Do amor mais verdadeiro.
St.º António vivei longe,
Nunca de nós se apartou,
E sempre presente esteve
Nos amores que consagrou.
Ao Menino, St.º António
Só um pedido deixou:
- Diz, quando chrgares ao Céu,
Que é de Lisboa que sou.
St.º António de Lisboa
Em Pádua foi acabar.
Deixou a cidade triste,
muita gente por casar.
St.º António era mestre
De prédicas e sermões,
Mas os milagres que fez
Foi sempre nos corações.
St.º António é um santo
Como não há outro igual;
Podem dizer que é de Pádua
Mas pertence a Portugal.
in A Lira do Povo (Quinhentas Quadras Populares)
***
selecção, organização de
José Fanha e José Jorge Letria
Diz alguém que a despedida
Nada custa ao coração;
Quem tal diz que se despeça,
E verá se custa ou não.
Ó triste segunda-feira
Da semana que há-de vir,
O meu amor diz que embarca:
Quem o há-de ver sair?
Nesta cruel despedida,
Diz, amor, que hei-de fazer;
Levar-te não é possível,
Deixar-te não pode ser.
Meu amor na despedida
Nem uma fala me deu;
Deitou os olhos ao chão,
Ficou a chorar mais eu.
Mal o haja o bem-querer,
A mim própria me praguejo,
Não há um Deus que me leve
nas horas que te não vejo!
Como o vento é para o fogo,
É a ausência para o amor:
Se é pequeno, apaga-o logo;
Se é grande, torna-o maior.
Desgraçado malmequer,
Onde vieste nascer.
Aonde não há saudades,
Não pode haver bem-querer.
Ao Penedo da Saudade
Todos se vão recordar,
Todos dizem: bem me lembro!
Todos voltam a chorar.
Se fossem pedras as lágrimas
Que eu por ti tenho chorado,
Já formavam um castelo
No centro do mar salgado.
(...)
***
(quadras populares recolhidas por)
Jaime Cortesão (1884 - 1960)
Ançã (Cantanhede) - Portugal
Fecha só os olhos meu amor. E devagar
escuta os mesmos sons. A água
escorre para a sede quente:
areia de pés nus.
Encosta só o ouvido. Respira
esta harmonia deste corpo. Os mesmos sons
projectos do tamanho deste mar.
Suave esta espiral. Flauta de ruídos
para ouvir.
~E não se parte o corpo. Só pelos sons
os mesmos sons. Tocata para um dia.
Escuta. Compara. Não vês a diferença
entre o cantar e o ser
de uma alegria?
in Cinco Vezes Onze Poemas em Novembro
***
Manuel Rui (1941)
Angola
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas