Quarta-feira, 21 de Maio de 2008
poema da menina tonta

A menina tonta passa metade do dia
a namorar quem passa na rua,
que a outra metade fica
pra namorar-se ao espelho.

A menina tonta tem olhos de retrós preto,
cabelos de linha de bordar,
e a boca é um pedaço de qualquer tecido vermelho.

A menina tonta tem vestidos de seda
e sapatos de seda,
é toda fria, fria como a seda:
as olheiras postiças de crepe amarrotado,
as mãos viúvas entre flores emurchecidas,
caídas da janela,
desfolham pétalas de papel...

No passeio em frente estão os namorados
com os olhos cansados de esperar
com os braços cansados de acenar
com a boca cansada de pedir...

A menina tonta tem coração sem corda
a boca sem desejos
os olhos sem luz...

E os namorados cansados de namorar...
Eles não sabem que a menina tonta
tem a cabeça cheia de farelos. 
 

***

Manuel da Fonseca (1911 - 1993)

Santiago do Cacém - Portugal



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Terça-feira, 20 de Maio de 2008
soneto

Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.

Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!

Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento


in Aves de Um Parque Real As Canções de António Botto

 

***

António Botto (1897 - 1959)

Abrantes - Portugal



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Segunda-feira, 19 de Maio de 2008
as casas (sinais gráficos)

Dispostas, cruciformes, sobre o linho,
desbotadas nos peitos e nas costas,
nos pratos,
vírgulas a esmo na paisagem,
urbanas reticências.

Feitas fotografia e problema,
circunspectas, circunflexas, as casas
com persianas, portadas e cortinas,
paroxítonas, reflexas.

Entre flores e aspas,
beliscaduras,
vícios e virtudes
e parêntesis.
Ponto final. Parágrafo.

Seus perfumes,
dois pontos: –

a rio e mar, por certo os teus
cabelos
as tuas mãos também
por onde passam, pousam estas letras.
 

in 27 Poemas

 

***

António Rebordão Navarro (1933)

Porto - Portugal



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Domingo, 18 de Maio de 2008
o rio

o rio

prendia-se

no remo

oscilando

o tancar

 

o coração

prende-se

no cais

de mar

 

in O Rosto

 

***

 

Alberto Estima de Oliveira (1934 - 2008)

Lisboa - Portugal



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Sábado, 17 de Maio de 2008
prelúdio

Quando o descobridor chegou à primeira ilha

nem homens nus

nem mulheres nuas

espreitando

inocentes e medrosos

detrás da vegetação-

 

Nem setas venenosas vindas do ar

nem gritos de alarme e de guerra

ecoando pelos montes.

 

Havia somente as aves de rapina

de garras afiadas

as aves marítimas de voo largo

as aves canoras

assobiando inéditas melodias.

 

E a vegetação

cujas sementes vieram presas

nas asas dos pássaros

ao serem arrastadas para cá

pela fúria dos temporais.

 

Quando o descobridor chegou

e saltou da proa do escaler varado na praia

enterrando

o pé direito na areia molhada

 

E se persignou

receoso ainda e surpreso

pensando n'El-Rei

nessa hora então

nessa hora inicial

começou a cumprir-se

este destino de todos nós.

 

in Cadernos de um Ilhéu

 

***

Jorge Barbosa (1902 - 1971)

Cabo Verde



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Sexta-feira, 16 de Maio de 2008
na solidão da mesma noite

Na solidão da mesma noite
e do mesmo monte
onde vasos
de luz ainda há pouco se entornavam.

Com a palma da mão
cobrindo os olhos, na retina
o fluxo de antigos silêncios,
a ciência do poente perdida
na terra firme do quarto

onde há-de caber sempre
o rosto de uma figura romântica
cismando sobre um mar de nuvens

 


Rui Lage (1975)
 
Porto - Portugal

 


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Quinta-feira, 15 de Maio de 2008
como eu costumava dizer

     Como eu costumava dizer

              o amor é mais difícil de nascer nos mais idosos

porque já percorreram

        os mesmos velhos trilhos muitas vezes

e depois quando a manhosa agulha se apresenta

                          não tomam o desvio

    e devoram a velha via errada enquanto

             o alegre tandem segue em voo

        e o maquinista da locomotiva a vapor não reconhece

            as novas buzinas eléctricas

e os velhos correm sob o impulso ferrugento

                                         cujo fim se encontra

         na erva morta onde

as latas ferrugentas e as molas de colchão e as lâminas de barbear usadas

                                         jazem

           e a via acaba abruptamente

                                   ali mesmo

embora as chulipas de madeira continuem por uns metros

                      e os velhos

dizem para si próprios

                                         Bem

                                                  Deve ser este sítio

                              onde temos de nos deitar

E deitam-se mesmo

 

                enquanto a bela carruagem iluminada prossegue lá ao longe

                no alto

                       no cimo da colina

                            com as janelas cheias de céu azul e namorados

      com flores

                                  e longos cabelos ondulantes

                                           e todos a rirem-se

                             e a dizerem adeus e

              a perguntarem-se a si próprios o que aquele cemitério

                      onde a vida acaba

                                                     é

 

De Pictures of the Gone World) in Como eu costumava dizer

Publicações D. Quixote (1972)

 

***

 

Lawrence Ferlinghetti (1919)

New York - USA



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Quarta-feira, 14 de Maio de 2008
príncipios

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez nao precisássemos de viver
tanto, quando só é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

 

 

***

 

Nuno Júdice (1949)

Mexilhoeira Grande - Portugal

 



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Terça-feira, 13 de Maio de 2008
e tudo era possível

Na minha juventude antes de ter saído

da casa de meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha lido

 

Chegava o mês de maio era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

 

E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

 

Só sei que tinha o poder de uma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer

 

in homem de palavra[s]

Editorial Presença (1978)

 

***

 

Ruy Belo (1933- 1979)

S. João da Ribeira (Rio Maior) - Portugal


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Segunda-feira, 12 de Maio de 2008
VII

talvez

tu

sentada

onde

pensas

por

um

instante

o ritual

necessário

do cruzar

as pernas

saibas

onde

afinal

nasce

o sítio

exacto

da demora

do meu

desejo

 

in O Pão no Rosto

Libros sem editor (1972)

 

***

 

Carlos Grade



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