A menina tonta passa metade do dia
a namorar quem passa na rua,
que a outra metade fica
pra namorar-se ao espelho.
A menina tonta tem olhos de retrós preto,
cabelos de linha de bordar,
e a boca é um pedaço de qualquer tecido vermelho.
A menina tonta tem vestidos de seda
e sapatos de seda,
é toda fria, fria como a seda:
as olheiras postiças de crepe amarrotado,
as mãos viúvas entre flores emurchecidas,
caídas da janela,
desfolham pétalas de papel...
No passeio em frente estão os namorados
com os olhos cansados de esperar
com os braços cansados de acenar
com a boca cansada de pedir...
A menina tonta tem coração sem corda
a boca sem desejos
os olhos sem luz...
E os namorados cansados de namorar...
Eles não sabem que a menina tonta
tem a cabeça cheia de farelos.
***
Manuel da Fonseca (1911 - 1993)
Santiago do Cacém - Portugal
Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.
Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!
Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!
E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento
in Aves de Um Parque Real As Canções de António Botto
***
António Botto (1897 - 1959)
Abrantes - Portugal
Dispostas, cruciformes, sobre o linho,
desbotadas nos peitos e nas costas,
nos pratos,
vírgulas a esmo na paisagem,
urbanas reticências.
Feitas fotografia e problema,
circunspectas, circunflexas, as casas
com persianas, portadas e cortinas,
paroxítonas, reflexas.
Entre flores e aspas,
beliscaduras,
vícios e virtudes
e parêntesis.
Ponto final. Parágrafo.
Seus perfumes,
dois pontos: –
a rio e mar, por certo os teus
cabelos
as tuas mãos também
por onde passam, pousam estas letras.
in 27 Poemas
***
António Rebordão Navarro (1933)
Porto - Portugal
o rio
prendia-se
no remo
oscilando
o tancar
o coração
prende-se
no cais
de mar
in O Rosto
***
Alberto Estima de Oliveira (1934 - 2008)
Lisboa - Portugal
Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação-
Nem setas venenosas vindas do ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.
Havia somente as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas de voo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.
E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pela fúria dos temporais.
Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada
E se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino de todos nós.
in Cadernos de um Ilhéu
***
Jorge Barbosa (1902 - 1971)
Cabo Verde
Na solidão da mesma noite
e do mesmo monte
onde vasos
de luz ainda há pouco se entornavam.
Com a palma da mão
cobrindo os olhos, na retina
o fluxo de antigos silêncios,
a ciência do poente perdida
na terra firme do quarto
onde há-de caber sempre
o rosto de uma figura romântica
cismando sobre um mar de nuvens
Rui Lage (1975)
Porto - Portugal
Como eu costumava dizer
o amor é mais difícil de nascer nos mais idosos
porque já percorreram
os mesmos velhos trilhos muitas vezes
e depois quando a manhosa agulha se apresenta
não tomam o desvio
e devoram a velha via errada enquanto
o alegre tandem segue em voo
e o maquinista da locomotiva a vapor não reconhece
as novas buzinas eléctricas
e os velhos correm sob o impulso ferrugento
cujo fim se encontra
na erva morta onde
as latas ferrugentas e as molas de colchão e as lâminas de barbear usadas
jazem
e a via acaba abruptamente
ali mesmo
embora as chulipas de madeira continuem por uns metros
e os velhos
dizem para si próprios
Bem
Deve ser este sítio
onde temos de nos deitar
E deitam-se mesmo
enquanto a bela carruagem iluminada prossegue lá ao longe
no alto
no cimo da colina
com as janelas cheias de céu azul e namorados
com flores
e longos cabelos ondulantes
e todos a rirem-se
e a dizerem adeus e
a perguntarem-se a si próprios o que aquele cemitério
onde a vida acaba
é
De Pictures of the Gone World) in Como eu costumava dizer
Publicações D. Quixote (1972)
***
Lawrence Ferlinghetti (1919)
New York - USA
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez nao precisássemos de viver
tanto, quando só é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
***
Nuno Júdice (1949)
Mexilhoeira Grande - Portugal
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
in homem de palavra[s]
Editorial Presença (1978)
***
Ruy Belo (1933- 1979)
S. João da Ribeira (Rio Maior) - Portugal
talvez
tu
aí
sentada
onde
pensas
por
um
instante
o ritual
necessário
do cruzar
as pernas
saibas
onde
afinal
nasce
o sítio
exacto
da demora
do meu
desejo
in O Pão no Rosto
Libros sem editor (1972)
***
Carlos Grade
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