Sábado, 31 de Maio de 2008
em torno da minha baía

Aqui, na areia,

sentada à beira do cais da minha baía

do cais simbólico, dos fardos,

das malas e da chuva

caindo em torrente

sobre o cais desmantelado,

caindo em ruínas

eu queria ver à volta de mim,

nesta hora morna do entardecer

no mormaço tropical

desta terra de África

à beira do cais a desfazer-se em ruínas,

abrigados por um toldo movediço

uma legião de cabecinhas pequenas,

à roda de mim,

num voo magistral em torno do mundo

desenhando na areia

a senda de todos os destinos

pintando na grande tela da vida

uma história bela

para os homens de todas as terras

ciciando em coro, canções melodiosas

numa toada universal

num cortejo gigante de humana poesia

na mais bela de todas as lições:

                                                          HUMANIDADE

 

 

in Poetas de São Tomé

 

***

 

Alda do Espírito Santo (1926)

São Tomé e Príncipe



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Sexta-feira, 30 de Maio de 2008
rua de camões

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

 
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

 
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

 
Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

 
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

 
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

 
Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

 
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

 
Não olhes para os rapazes
que é feio.

 

***

Inês Lourenço (1942)

Porto - Portugal
 



publicado por carlossilva às 00:02
link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 29 de Maio de 2008
sonetos

Amor é um arder, que se não sente;
É ferida, que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
É frágoa, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos,
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando, em quando;
É quem me causa eternos sentimentos:
É quem me mata, e vida me está dando.
 

***

Abade de Jazente (1719 - 1789)

Amarante - Portugal



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Quarta-feira, 28 de Maio de 2008
de tarde

Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
 

 

***

Cesário Verde (1855 - 1886)

Lisboa - Portugal



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Terça-feira, 27 de Maio de 2008
do alto mar

Tripulação!
às gáveas e às enxárcias;
ao leme e aos cordames;
atenta à tempestade
que anda no Mar
e vai
no nosso coração.

Tripulação!
Ajuda a tempestade...
Deixa ruir o mastro da mesena!
Lança à boca das ondas o sextante!
Deixa ao sabor das vagas o navio!
Não tenhas pena!

Quando haja só convés ao raso de água:
Tripulação...
Atenta.
 

***

Álvaro Feijó (1916 - 1941)

Viana do Castelo - Portugal



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Segunda-feira, 26 de Maio de 2008
caridade

As senhoras da sociedade

deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.
 
Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio-tombados...
 
Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...
a que assistiu toda a gente.
 
***
Joaquim Namorado (1914 - 1986)
Alter do Chão - Portugal


publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Domingo, 25 de Maio de 2008
palavras como pedras

MAIO DE 68

(Sobre uma pintura de Júlio Pomar)


Todos os cavalos são jovens
quando o poder cai na rua.
É tudo o que posso dizer agora
olhando cuidadosamente
aquilo que a memória me diz ter sido
o terramoto da minha juventude.

Pergunto: primeira linha,
onde estão os companheiros
que há 30 anos lançavam
palavras duras como pedras de basalto?
E os que dançavam nus
na fonte da sua tão pura
e perversa idade?
E os que quebravam cadeias e tabus?
E os que habitavam o novelo inconsolável
da perfeita inquietação?

Pergunto por eles:
Joaquim, Zé Carlos, Isabel, Amélia, António, Violeta,
onde estão vocês agora
ó fios de prumo da raiva
ó pequenos deuses da minha juventude a galope?

Um casou-se bem e é presidente
de uma coisa difícil de soletrar.
Outro escreve no jornal
importantes banalidades de veludo.
Outro é director de uma fábrica
de tornar crianças parvas.
Outro é ministro de Assuntos Muito Oblíquos.
Alguns deixaram-se queimar
no seu próprio fogo
e ficaram tristes para sempre.
Uma outra que
encontro de vez em quando
é médica e diz que ainda se comove ao tropeçar
nas guelras do sofrimento alheio; luta
quase sempre sozinha
para trazer o arco-íris
para a sala escavacada
das urgências de um hospital de província.

Um outro
finalmente
diz quem sabe que é poeta
e guarda num canto da gaveta do seu quarto
uma palavra impossível
uma fome inconsolável
um sorriso
uma pedra
uma côdea de pão solene e grave
uma música nos olhos
que ninguém pode calar.

in Marinheiro de outras luas

 

***

José Fanha (1951)

Lisboa - Portugal



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Sábado, 24 de Maio de 2008
cais

Nunca parti deste cais

e tenho o mundo na mão!

Para mim nunca é de mais

responder sim

cinquenta vezes a cada não.

 

Por cada barco que me negou

cinquenta partem por mim.

Mundo pequeno para quem ficou...

Mundo pequeno para quem ficou...

 

in Crioulo e Outros Poemas

 

***

 

Manuel Lopes (1907)

Santo Antão - Cabo Verde



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Sexta-feira, 23 de Maio de 2008
arte poética


Gostaria de começar com uma pergunta

 

ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho

 

ter ou não entrado no poema!
 
 
 
in  Soletrar o Dia. Obra Poética
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2002
 
 
 
 
 
 
 
***
Rosa Alice Branco (1950)
Aveiro (portugal)
 


publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 22 de Maio de 2008
pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

 

***

Sebastião da Gama (1924 - 1952)

Azeitão - Portugal



publicado por carlossilva às 00:01
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
agenda
18 de abril 2013 19 de abril 2013
Junho 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
14
15

18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30


posts recentes

fogo e água

pára-me de repente o pens...

si digo mar

infância

trapo de voz representa o...

nana para gatos a punto d...

sou uma coluna crematória

dois poemas

nacín vello de máis

uelen

arquivos

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

tags

a m pires cabral(4)

adelia prado(5)

adilia lopes(8)

al berto(6)

alba mendez(4)

albano martins(4)

alberte moman(8)

alberto augusto miranda(9)

alexandre teixeira mendes(11)

alfonso lauzara martinez(8)

alice macedo campos(13)

alicia fernandez rodriguez(5)

almada negreiros(4)

amadeu ferreira(8)

ana luísa amaral(6)

ana marques gastao(4)

andre domingues(5)

andreia carvalho(4)

antonio barahona(5)

antonio cabral(5)

antonio gedeao(5)

antonio ramos rosa(7)

anxos romeo(4)

ary dos santos(5)

augusto gil(4)

augusto massi(4)

aurelino costa(11)

baldo ramos(6)

bruno resende(5)

camila vardarac(9)

carlos drummond de andrade(5)

carlos vinagre(13)

cesario verde(4)

concha rousia(4)

cristina nery(5)

cruz martinez(9)

daniel filipe(5)

daniel maia - pinto rodrigues(4)

david mourão-ferreira(6)

elvira riveiro(8)

emma couceiro(4)

estibaliz espinosa(7)

eugenio de andrade(8)

eva mendez doroxo(8)

fatima vale(10)

fernando assis pacheco(4)

fernando pessoa(5)

fiamma hasse pais brandão(5)

florbela espanca(7)

gastão cruz(5)

helder moura pereira(4)

ines lourenço(6)

iolanda aldrei(4)

jaime rocha(5)

joana espain(10)

joaquim pessoa(4)

jorge sousa braga(6)

jose afonso(5)

jose carlos soares(4)

jose gomes ferreira(4)

jose luis peixoto(4)

jose regio(4)

jose tolentino mendonça(4)

jussara salazar(6)

luis de camoes(5)

luisa villalta(4)

luiza neto jorge(4)

maite dono(5)

manolo pipas(6)

manuel alegre(6)

manuel antonio pina(8)

maria alberta meneres(5)

maria do rosario pedreira(5)

maria estela guedes(7)

maria lado(6)

maria teresa horta(5)

marilia miranda lopes(4)

mario cesariny(5)

mia couto(8)

miguel torga(4)

nuno judice(8)

olga novo(17)

pedro ludgero(7)

pedro mexia(5)

pedro tamen(4)

raquel lanseros(9)

roberta tostes daniel(4)

rosa enriquez(6)

rosa martinez vilas(8)

rosalia de castro(6)

rui pires cabral(5)

sophia mello breyner andressen(7)

suzana guimaraens(5)

sylvia beirute(11)

tiago araujo(5)

valter hugo mae(5)

vasco graça moura(6)

virgilio liquito(5)

x. m. vila ribadomar(6)

yolanda castaño(10)

todas as tags

links
pesquisar
 
blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub