Aqui, na areia,
sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:
HUMANIDADE
in Poetas de São Tomé
***
Alda do Espírito Santo (1926)
São Tomé e Príncipe
A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva
Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia
Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes
Não olhes para os rapazes
que é feio.
***
Inês Lourenço (1942)
Porto - Portugal
Amor é um arder, que se não sente;
É ferida, que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.
É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
É frágoa, que devora o fogo ardente.
É um triste penar entre lamentos,
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.
É suspiros lançar de quando, em quando;
É quem me causa eternos sentimentos:
É quem me mata, e vida me está dando.
***
Abade de Jazente (1719 - 1789)
Amarante - Portugal
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
***
Cesário Verde (1855 - 1886)
Lisboa - Portugal
Tripulação!
às gáveas e às enxárcias;
ao leme e aos cordames;
atenta à tempestade
que anda no Mar
e vai
no nosso coração.
Tripulação!
Ajuda a tempestade...
Deixa ruir o mastro da mesena!
Lança à boca das ondas o sextante!
Deixa ao sabor das vagas o navio!
Não tenhas pena!
Quando haja só convés ao raso de água:
Tripulação...
Atenta.
***
Álvaro Feijó (1916 - 1941)
Viana do Castelo - Portugal
As senhoras da sociedade
MAIO DE 68
(Sobre uma pintura de Júlio Pomar)
Todos os cavalos são jovens
quando o poder cai na rua.
É tudo o que posso dizer agora
olhando cuidadosamente
aquilo que a memória me diz ter sido
o terramoto da minha juventude.
Pergunto: primeira linha,
onde estão os companheiros
que há 30 anos lançavam
palavras duras como pedras de basalto?
E os que dançavam nus
na fonte da sua tão pura
e perversa idade?
E os que quebravam cadeias e tabus?
E os que habitavam o novelo inconsolável
da perfeita inquietação?
Pergunto por eles:
Joaquim, Zé Carlos, Isabel, Amélia, António, Violeta,
onde estão vocês agora
ó fios de prumo da raiva
ó pequenos deuses da minha juventude a galope?
Um casou-se bem e é presidente
de uma coisa difícil de soletrar.
Outro escreve no jornal
importantes banalidades de veludo.
Outro é director de uma fábrica
de tornar crianças parvas.
Outro é ministro de Assuntos Muito Oblíquos.
Alguns deixaram-se queimar
no seu próprio fogo
e ficaram tristes para sempre.
Uma outra que
encontro de vez em quando
é médica e diz que ainda se comove ao tropeçar
nas guelras do sofrimento alheio; luta
quase sempre sozinha
para trazer o arco-íris
para a sala escavacada
das urgências de um hospital de província.
Um outro
finalmente
diz quem sabe que é poeta
e guarda num canto da gaveta do seu quarto
uma palavra impossível
uma fome inconsolável
um sorriso
uma pedra
uma côdea de pão solene e grave
uma música nos olhos
que ninguém pode calar.
in Marinheiro de outras luas
***
José Fanha (1951)
Lisboa - Portugal
Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é de mais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.
Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim.
Mundo pequeno para quem ficou...
Mundo pequeno para quem ficou...
in Crioulo e Outros Poemas
***
Manuel Lopes (1907)
Santo Antão - Cabo Verde
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.
***
Sebastião da Gama (1924 - 1952)
Azeitão - Portugal
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