Todo o corpo mergulhado num líquido
perde de si a noção,
o centro, a memória involuntária
que o faz erguer-se e gritar;
pernas, braços, olhos, língua,
são a mesma coisa indistinta
em que não se percebe o que é què
para que serve
que desígnio divino ilustram
e inventam,
por que andam, o que os faz espantalhos
na solidão da mais profunda noite,
o que vêem como espectros,
pálidas cintilações de outra luz
que não ousam enfrentar,
a função primordial do beijo
pelo qual as línguas se esquecem de falar.
Deve ser da água
ou da pressão da água,
ou talvez da ansiedade estranha por se sentir
na água
a inversa representação do nosso
mais terreno império:
ali não somos nada, pouco valemos,
nenhum pensamento nos vem,
ocupado o corpo em sofrer,
domar, gerir, sobreviver
à impulsão vertical de baixo para cima,
ao estranho secreto poder da água de mil águas,
gotas que só são gotas porque as podemos
inventar,
de resto,
mole imensa,
informe massa, ameaça difusa, perigo iminente,
o mais estranho meio onde ainda nos movemos
porque só nós sabemos aproveitar
a força que nos impele
igual
ao peso do volume do líquido
que o corpo, todo o corpo mergulhado num líquido,
comanda, desloca, agita, ocupa
e esgota,
no momento final
em tudo igual
ao que nos fez pela primeira vez
gritar.
***
António Mega Ferreira
Lisboa - 1949
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