Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.
Deixo a dor de te deixar
na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.
Nem amor pode ser livre
se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.
E levo a terra que deixo
onde deixo a dor que tive.
Na que levar levarei
este amor que é livre livre.
***
manuel alegre
*
Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.
Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.
Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.
Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.
***
Manuel Alegre
*************************
Não sei de amor senão o amor perdido
o amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não pára de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.
não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.
Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dói no corpo ferido
onde não deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido
Não sei de amor senão o sem sentido
sete amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.
Não sei de amor senão o não haver
amor que dure mais do que o nunca tido.
Há um corpo que não pára de doer
só esse é que não morre de tão perdido
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei de amor senão o amor ferido.
não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter ido
o teu corpo de ser e de não ser
só esse é meu por nunca ter ardido
não sei de amor senão esse perder.
Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.
***
Manuel Alegre
*******************************
Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
***
Manuel Alegre (1936)
Águeda - Portugal
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
***
Manuel Alegre
É possível falar sem um nó na garganta é possível amar sem que venham proibir é possível correr sem que seja fugir. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta. É possível andar sem olhar para o chão é possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros se te apetece dizer não grita comigo: não. É possível viver de outro modo. É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor. É possível o pão. É possível viver de pé. Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive. É possível ser homem. É possível ser livre livre livre.
Manuel Alegre (1936)
Águeda - Portugal
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