fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
***
josé luis peixoto
*
Como se ontem e os dias antes de ontem
se tivessem desfeito sobre as prateleiras,
como se pudéssemos escrever palavras
nas suas cinzas com a ponta do dedo,
como se bastasse soprar para vermos
as suas imagens de novo, numa nuvem.
***
José Luís Peixoto
*************************
fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
***
José Luís Peixoto (1974)
São como sombras tristes, são como o outono.
pode olhar-se para dentro das cruzes ao longo
das estradas, são como poços, são como filhos
perdidos. As cruzes ao longo das estradas estão
cobertas por flores de plástico, secas, desbotadas
pela luz que, nos campos, brinca com os rostos
e com a memória. Existem linhas traçadas entre
o céu e as cruzes ao longo das estradas, são elas
que seguram uma parte do mundo, só os pais são
capazes de as ver
Agora, enquanto falamos de papagaios de papel,
elas estão lá, onde sempre estiveram.
As cruzes ao longo das estradas são diferentes
de nós porque se nós somos vento e passamos,
as cruzes ao longo das estradas também são o vento,
mas há muito tempo que conseguiram chegar lá.
***
José Luís Peixoto (1974)
Galveias - Portalegre (Portugal)
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas