Sexta-feira, 22 de Julho de 2011
aurora boreal

 

Tenho quarenta janelas

nas paredes do meu quarto.

Sem vidros nem bambinelas

posso ver através delas

o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,

por outra a luz do luar,

por outra a luz das estrelas

que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea

como um vapor de algodão,

por aquela a luz dos homens,

pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto,

pela menor a certeza,

pela da frente a beleza

que inunda de canto a canto.

Pela quadrada entra a esperança

de quatro lados iguais,

quatro arestas, quatro vértices,

quatro pontos cardeais.

Pela redonda entra o sonho,

que as vigias são redondas,

e o sonho afaga e embala

à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,

por aquela entra a saudade,

e o desejo, e a humildade,

e o silêncio, e a surpresa,

e o amor dos homens, e o tédio,

e o medo, e a melancolia,

e essa fome sem remédio

a que se chama poesia,

e a inocência, e a bondade,

e a dor própria, e a dor alheia,

e a paixão que se incendeia,

e a viuvez, e a piedade,

e o grande pássaro branco,

e o grande pássaro negro

que se olham obliquamente,

arrepiados de medo,

todos os risos e choros,

todas as fomes e sedes,

tudo alonga a sua sombra

nas minhas quatro paredes.

 

Oh janelas do meu quarto,

quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta

falta-me a luz e o ar.

 

***

 

antónio gedeão

 

*


lido em: http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/antonio_gedeao/poetas_anton

publicado por carlossilva às 12:17
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Terça-feira, 22 de Março de 2011
poema do amor

 

Este é o poema do amor.

 

Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre.

Do amor.

Do amor.

Do amor.

 

Este é o poema do amor.

 

Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.

 

Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho.

Do amor.

Do amor.

Do amor.

 

Este é o poema do amor.

 

Do amor das soleiras das portas

e das varandas que estão por cima dos números das portas

com begónias e avencas plantadas em tachos e terrinas.

Do amor das janelas sem cortinas

ou de cortinas sujas e tortas.

 

Este é o poema do amor.

 

Do amor das pedras brancas do passeio

com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem,

e as ervas teimosas a nascerem de permeio

e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.

Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas

com chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.

Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas

a entrarem e a saírem, e as pessoas todas muito malcriadas.

 

Este é o poema do amor.

 

Do amor do sol e do luar,

do frio e do calor,

das árvores e do mar,

da brisa e da tormenta,

da chuva violenta,

da luz e da cor.

Do amor do ar que circula

e varre os caminhos

e faz remoinhos

e bate no rosto e fere e estimula.

Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,

do amor de amar sem lei nem compromisso,

do amor de olhar de lado como fazem as aves,

do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso.

Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,

que salta, que voa, que vibra e lateja.

Das fitas ao vento,

dos barcos pintados,

das frutas, dos cromos, das caixas de tintas, dos supermercados.

 

Este é o poema do amor.

 

O poema que o poeta propositadamente escreveu

só para falar de amor,

de amor,

de amor,

de amor,

para repetir muitas vezes amor,

amor,

amor,

amor.

Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico

contar as palavras que o poeta escreveu,

tantos que,

tantos se,

tantos lhe,

tantos tu,

tantos ela,

tantos eu,

conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu

foi amor,

amor,

amor.

 

Este é o poema do amor.

 

***

antónio gedeão

 

*


lido em: Poesias Completas (1956 - 1967)

publicado por carlossilva às 17:51
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Segunda-feira, 31 de Maio de 2010
viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revôlta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

 

***

 

antónio gedeão

 

(lisboa, 1906 - 1997)

 

*************************




publicado por carlossilva às 12:17
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Domingo, 1 de Junho de 2008
pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos


que em verde e ouro se agitam
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma. é fermento,
bichinho alacre e sedento.
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel.
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança.,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som televisão
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma criança.

 

***

 

António Gedeão



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Domingo, 23 de Março de 2008
minha aldeia

 

 

Minha aldeia é todo o mundo.

Todo o mundo me pertence.

Aqui me encontro e confundo

com gente de todo o mundo

que a todo o mundo pertence

 

 

Bate o sol na minha aldeia

com várias inclinações.

Ângulo novo, nova ideia;

outros graus, outras razões.

Que os homens da minha aldeia

são centenas de milhões.

 

 

Os homens da minha aldeia

Divergem por natureza.

O mesmo sonho os separa,

a mesma fria certeza

os afasta e desampara,

rumorejante seara

onde se odeia em beleza.

 

 

Os homens da minha aldeia

formigam raivosamente

com os pés colados ao chão.

Nessa prisão permanente,

cada qual é seu irmão.

Valências de fora e dentro

ligam tudo ao mesmo centro

numa inquebrável cadeia.

Longas raízes que imergem,

todos os homens convergem

no centro da minha aldeia.

 

 

António Gedeão

Poesias Completas (1956-1967)

Colecção Poetas de Hoje - Portugália Editora - Lisboa

6ª edição



publicado por carlossilva às 00:01
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