A Leonor continua descalça
o que sempre lhe deu certa graça.
Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre o pé.
Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia j´podre no pão.
Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.
Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
***
antónio cabral
*
Ter-te-ei no pensamento por muitos anos,
ó corpo que eu igualei à flor da esteva,
bravia mas crescente, flor fecunda
quando o silêncio reverdece.
Não me peçam palavras de palavras
ou corpo rarefeito, som estéril.
Fiz um contrato com o vento oeste;
o meu espanto provi-o de asas suficientes.
Vou contigo no absurdo de existires,
mas sei que vou, hasteando a minha culpa
de não ser bem digno dos olhos
que se habituaram à companhia dos outros.
Detesto o isolamento como princípio,
porque vivo em comunidade.
Quando me bloquearem os olhos,
começa por favor a tecer uma estrela.
Gosto das noites quentes da minha terra,
quando os lavradores sonham coisas impossíveis.
Gosto de ti, porque me enraiveces
e fazes clamar, embora no deserto.
Fiz um contrato com o vento oeste.
Empresta-me o teu olhar de flor bravia.
Alguma coisa hei-de ter de novo,
quando o silêncio reverdece.
***
antónio cabral
castedo do douro, 1931 - 2007
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O futuro começa na palavra
bem pregada na tábua ou terra
e osso dos dias. Meu prego, meu pulso
do tamanho exacto do meu país.
***
António Cabral
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I
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura:
Vai formosa e não segura.
II
Se tivesse umas chinelas
iria melhor...; mas não:
com dinheiro das chinelas
compra um pouco mais de pão.
Virá o dia em que os pés
não sintam a terra dura?
Leonor sonha de mais:
vai formosa e não segura.
Formosa! Não vale a pena
ter nos olhos uma aurora
quando na vida – que vida! –
o sol se foi embora.
Se os filhos se alimentassem
com a sua formosura...
Leonor pensa de mais:
vai formosa e não segura.
Há verduras pelos prados,
há verduras no caminho;
no olmo de ao pé da fonte
canta, livre, um passarinho,
Mas ela não canta, não,
que a voz perdeu a doçura.
Leonor sofre de mais:
vai formosa e não segura.
Porque sofre? Nunca soube
nem saberá a razão.
Vai encher a talha de água,
só não enche o coração.
Virá um dia... virá...
Os olhos voam na altura
Leonor não anda: sonha.
Vai formosa e não segura.
***
António Cabral (1931 - 2007)
Castedo do Douro (Alijó)
Pensamento animal,
com agudas ideias a vará-lo
e que fique depois finando-se no chão,
com moiscas ou abutres a acabá-lo.
As palavras, é claro, são precisas,
(aí ficam trinta e três)
tão precisas
como pagar a renda ao fim do mês.
Mais preciso, no entanto, é que eu vos diga
o que hoje sucedeu
aquià minha porta, em pleno dia,
enquanto Apolo 11 ia pró céu.
- O senhor acredita na justiça?
- O que é preciso é ter dinheiro.
- Se o não tiver?
- Arranje-o primeiro.
Eram dois entre muitos.
E eu fico-me pràqui a meditar
naquela solução, bem maia difícil
que a descida lunar.
Pensamento animal,
unhas e cornos ensanguentados
de tanto lutar, de tanto,
com os fados.
in quando o silêncio reverdece
Razão Actual (1971)
***
António Cabral (1931 - 2007)
Castedo do Douro (Alijó) - Portugal
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