Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!
Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!
***
almada negreiros
*
Nascer
vir a este mundo
é acordar legível do sono eterno.
Maravilhoso (e é) que seja acordar
traz mistura pessoal:
preferia não ter nascido.
Fazemos parte de animal perpétuo
que exige o nosso serviço d'ele.
Mas um é passageiro
tem que inventar optimismo e graça
e permanecer acordado o animal perpétuo.
Nascemos órgão e seremos, afinal, o todo do organismo.
Personalidade não ésenão o ímpeto para nos deixarmos de nascidos intactos
é condição primeira do ser vivo eterno que somos.
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
a paz que nos esperava.
***
almada negreiros (1893 - 1970)
Quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!
***
Almada Negreiros
****************************
A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
José de Almada Negreiros (1893 - 1970)
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