Para o Tiago
Tudo o que não é literatura aborrece-me -
queixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha -
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso.
Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não levantes a mão.
Vem, vem apenas,
come as you are
- embora seja tarde.
Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e vozes molhadas em tabaco.
Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantavam as saias à história.
Já tirámos os cavalos,
já limpámos as trincheiras.
Vem ralar na minha pele arrepiada
a cor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.
Vem sem falta -
o palco está vazio,
a sala cheia.
Com o passo lento das derrotas,
um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á ao último acto.
***
golgona anghel
alexandria (roménia), 1979
*
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