era uma vez um poeta
que queria pôr no mar coisas da terra
já lá havia estrelas
cavalos
e anémonas
que mais se haveria de arranjar?
talvez uma roda de oleiro
lentamente formando ondas
que nunca se hão de quebrar
(pelo menos não serão esquecidas)
talvez pólvora muito húmida
fazendo o mar rebentar
em polvorosa
ou em pôr-de-rosa
talvez até uma peça a duas vozes
(ora o tema em maré cheia
ora o tema em maré vaza)
fazendo, de todas as horas, vagas
que se podem continuamente inventar
***
pedro ludgero
*
Para quem eu seja
a verdade física de minha existência.
E as emanações de um perfume,
de onde o inefável se recomponha
de seus ossos, nenhures,
fraturas do incontável.
Reordenar memórias,
eu que não habito
o que é meu em ti,
obliterada
na ubiquidade da matéria,
transida – de inevitável,
eu, que a mim, em ti,
o que seremos?
***
roberta tostes daniel
*
Há caleidoscópios no interior de certas bibliotecas
que se conservam na abóbada regular das resignações
de simétricas esperanças de persistentes palavras
com emaranhadas aranhas nos filamentos da hesitação
a aterrar na luminosa folha da intenção imprecisa
a visitar as estátuas
a amargar a rima
na convalescença da pedra
por entre condutas de gás lacrimogéneo
bibliotecas inteiras voltadas para a tarde
num assobiar de dentes de tédio
onde num amarrotar de poetas
apenas um reflectido dilúvio de noites certas
íris onde semiluas de aparição vagas atravessassem
os livros as mãos carregadas
as clavículas das letras apagadas
as letras taciturnas as letras coalhadas
na platónica cidade com o suprimir do grito definitivo
com a mudez dos mimos a penetrar os corredores
das cativas palavras decisivas
pelo olhar triste da estátua que passa
pelo estreito sorriso de uma ideia marioneta
jaz o Poeta
jaz o Poeta Último
na república incompleta
jaz o Poeta
***
constanza muirin
*
(CANTO FRATERNO PARA CARLOS NOVO)
I
Como aranhas que se abraçam
as minhas pestanas encontram-se na noite
e mesmo ao fechar os olhos
vejo a tua bola de couro
lançada ao infinito da nossa eira de cima
circulando entre os trevos e o arame da roupa
e os teus olhos de menino a calcular a parábola exacta
descrita pela bola entre as margaridas e o ar.
Acaricias tal qual um clavecino
mas tu não o sabes.
Como a porta do Inferno de Rodin
fecho o ferro forjado da vista
e mesmo ao encontrar-me cara a cara com a retina
vejo a tua bicicleta humilde
que circulava à velocidade de um astro
sem freios nem pneumáticos e algum raio partido
mas tu partias o espaço pelo tempo
e a fórmula consentia com ternura
levar-te lá onde tu quisesses.
A tua bondade é artesanal
como o pão da casa
ou a música de um órgão rústico
mas tu não o sabes.
Deixa as vacas comerem os medos infantis
deixa-as remoer entre ferrã e carolos o frio
que passaste enquanto velavas para que comessem o pasto
e engordassem com flores
foram-se com os cornos abertos ao horizonte
levando com elas aquele que foi o nosso mundo.
Dormiam as cifras a sua soma nos teus cadernos de contas
cansados de trabalhar
com as tuas mãos pequeninas
as crostas dos teu joelhos feridos
brilham como a casca de um sol infantil
e a tua inteligência tornava-se maior entre cerejas maduras
e calças curtas
tocavas com um dedinho um número que treme como uma borboleta
e sabias que o seu coração podia dividir-se em três partes.
Olhavas talvez os cântaros do leite
e revelava-se a eterna forma do cilindro
ninguém sabia que três catorze dezasseis era um número pi
e tu
brincavas com ele no meio dos grilos.
Regressavas da tua mente brilhante
tão humilde como quem ficou em branco
no meio da neve
mas tu não o sabes.
Aprendi a contar com favas que me davas
a saber que um peão branco perdia a vida facilmente
perante uma rainha negra
que a combinatória é uma arte sagrada
que se a dez grãos-de-bico lhe tiro três
estou subtraindo e o resultado é sete.
Regressavas da tua delicadeza
como quem regressa de semear milho e não sabe
que faz um milagre
porque tu não o sabes.
II
Ah partilhar contigo o mesmo sistema linfático
o código que nos frisou o cabelo e decidiu
curvar-nos a coluna como uma cobra
Ah ir correr pelos campos uterinos
carregar –me às costas regressando do rio
dar-me a mão quando choro e a transfusão da paz.
Irmão meu igual o teu coração aos meus gametas
Irmão meu igual a partitura do nosso concerto
para cromossoma e cordas.
Irmão meu igual
meu irmão.
III
Teorema:
Tu és o velho
eu a criança.
Despejas o dia com uma equação
saio ao sol para ver-te
integra como a maçã que desperta segura da sua semente
Eu sou a criança
tu és o velho.
IV
Cúmplice amigo contemplo contigo
o arco da velha das nossas vidas
a álgebra da liberdade
as raízes profundas do polinómio do humor
o amor contido em partes idênticas no ácido nucleico.
Chove suavemente
o corço cruza-se contigo na chã
e reconhece em ti o meu próprio açúcar
o meu próprio nitrogénio
o meu próprio fosfato
o corço cruza-se comigo e parte com uma parte de ti
para o fundo do bosque
onde ainda somos capazes de dormir em posição fetal
entre campânulas e a bosta sagrada do bezerrinho.
E a mesma cicatriz do apêndice adorna a nossa pele
como um relâmpago perfeito de sete pontos de sutura
sobre o céu.
E se acaso não te disse que te quero
escrevo este concerto para cromossoma e cordas
para que se um dia perder a memória e não lembrares
que éramos um sendo dois
maravilha da matemática
enigma da metafísica
evidência da vida.
***
olga novo
*
[vertido do galego por BlogNi]
Os olhos mordem o corpo e as mãos são úteis e triviais, formas de prolongar os gestos mais insensatos num teclado de tácticas brancas. Há sempre gente que passa. A tarde é demasiado sólida para permitir uma festa na galáxia do caos. Há, ainda por cima, uma procissão de crianças a pé, de patins, de bicicleta, às cavalitas de um sonho com uma neoplasia original na metade superior direita da sua realização inquebrável. Tudo parece demasiadamente digestivo e o sol hospeda a normalidade junto dos lugares inevitáveis e universais. Tudo parece desencorajar a prática abrupta, o exercício na extremidade passional, o instinto da excepção, o focinho da deslealdade. Tudo parece ameno e vagamente victoriano, com adultos que passam com a elegância e a mística do seu tempo e do seu bem-estar, com os relinchos dos cavalos dentro da sua pose aristocrática, com palácios em cada passo, silêncio no pensamento, civilização e realce. Mas os olhos daquele homem continuam a morder o corpo da mulher que se sentou ao seu lado na esplanada daquele café, perto do centro da cidade. Continuam a pedir um certo tipo de resgate e um certo tipo de explicação.
***
andré domingues
*
Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz
Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações
Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!
***
josé gomes ferreira
*
[com música de fernando lopes graça]
O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça,
meu medo da morte.
(João Cabral de Melo Neto)
Vestiram-se para a foto. Ele, distinto em um paletó preto gravata borboleta lenço na lapela e os óculos, aros fininhos. Didi em um vestido com botõezinhos e plissê, brincos em forma de coração vermelho com pedrinhas ao redor um trancelim de ouro com medalhinha e cabelos curtos muito curtos, repartidos à la garçonne. Olham para o infinito.
Um dia ele morreu.
Didi vestiu-o pela derradeira vez igual à foto, cobriu o caixão com cravos brancos depois vestiu-se de preto.
Quis enlouquecer mas na semana seguinte ele voltou, contou tudo.
Não se habituara muito com aquela vida de morte.
— Que brincadeira é essa?
E estava ele de volta. Viviam assim em núpcias.
Às vezes ele não vinha. Ela caía numa tristeza de dar dó. Dia seguinte ele surgia novamente em frente ao portão, corado e bem disposto. Didi perdeu a conta de quantas vezes ele morreu de quantas viveu talvez a vida toda.
O tempo passou. Chegou o dia em que ela Didi, também resolveu que ia morrer. Elegante, despediu-se de todos, deitou no caixão.
Estava linda vestido branco, pulseira dourada e um véu bordado com minúsculas borboletas rosadas cobrindo o corpo antigo.
As matas se incendiaram fogo fátuo.
As folhas do caderno de anotações voaram atravessadas pelo calor do vento volando as cortinas de seda.
***
jussara salazar
*
Somos andamiaje
construcción en aire
deslizamiento y derrumbe
tachadura en cuaderno de apuntes
muro de contención
página virgen
Somos tránsito
oleaje que revienta su giro
sincronías y pérdidas
En la transparencia del quiebre
a veces
solo a veces
somos la vida vista en tercera persona.
***
camila rios armas
caracas (venezuela), 1989
*
*
Somos andaime
construção no ar
deslizamento e derrube
rasura em caderno de apontamentos
muro de contenção
página virgem
Somos trânsito
marulhar que rebenta seu rodopio
sincronias e perdas
Na transparência da quebra
às vezes
só às vezes
somos a vida vista na terceira pessoa.
Pacté con mi madre un tatuaje en el cuello.
Las dos compartiríamos marca,
las dos,
el sello de la tinta que nos une.
Sin embargo ahora
una cicatriz en el lugar íntimo
separa nuestras nucas para siempre.
***
luna miguel
*
Pela morada-norte com seus peixes de linhas de letras inscritos no sopro das paredes
As navegações pela porção de sobras pelos frascos de vidro pelos olhos
Onde se acolhem o verde adocicado do ópio as chuvas de agosto
À procura da voz salgada de declamar os veios das conchas os fundamentos das cascas
Com as mãos ainda protegidas na mesa a resgatar da madeira o estro dos trilhos
À espera do olhar descido do olhar complacente que se obriga ao pretérito
De quem tem agendada a morte para o dia imediato e é tão humilde ao amor
Os dedos brincam com as espadas sobre o corpo:
São dolorosas as invasões do espelho que não permaneceu
Os peixes que se formam do pó da reminiscência não cumprem coisa nenhuma
Conto-os e eles continuam a multiplicar-se se fecho os olhos
Não cumprimos o real nem eu nem esta morada nem a memória
Ela que ainda raspa as unhas na madeira submerge nos cadernos
Circula
A prata das canetas o negrume dos isqueiros ela que não se concilia com o lume
Que estranha o peso dos livros e proíbe a chuva com sua decisão de escuro
À procura de uma voz salgada que emirja das quimeras como uma bússola
***
constanza muirin
*
adelia prado(5)
adilia lopes(8)
al berto(6)
alba mendez(4)
anxos romeo(4)
augusto gil(4)
aurelino costa(11)
baldo ramos(6)
carlos vinagre(13)
daniel maia - pinto rodrigues(4)
fatima vale(10)
gastão cruz(5)
jaime rocha(5)
joana espain(10)
jose afonso(5)
jose regio(4)
maite dono(5)
manolo pipas(6)
maria lado(6)
mia couto(8)
miguel torga(4)
nuno judice(8)
olga novo(17)
pedro mexia(5)
pedro tamen(4)
sophia mello breyner andressen(7)
sylvia beirute(11)
tiago araujo(5)
yolanda castaño(10)
leitores amigos
leituras minhas
leituras interrompidas