Segunda-feira, 31 de Março de 2008
arrojos
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

                        
Cesário Verde
                        Lisboa, Diário de Notícias
 22 de Março de 1874





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Domingo, 30 de Março de 2008
é urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

 

Eugénio de Andrade
 



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Sábado, 29 de Março de 2008
minha senhora de mim
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
 
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
 
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
 
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
 
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
 
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito 
 
Maria Teresa Horta


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Sexta-feira, 28 de Março de 2008
queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.


Natália Correia
Poesia Completa
Publicações Dom Quixote
1999


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Quinta-feira, 27 de Março de 2008
ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

 

Florbela Espanca



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Quarta-feira, 26 de Março de 2008
mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

                   
 Fernando Pessoa
in Mensagem



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Terça-feira, 25 de Março de 2008
a anémona dos dias

  

Aquele que profanou o mar

E que traiu o arco azul do tempo

Falou da sua vitória

 

Disse que tinha ultrapassado a lei

Falou da sua liberdade

Falou de si próprio como de um Messias

 

Porém eu vi no chão suja e calcada

A transparente anêmona dos dias.

 

Sophia de Mello Breyner Andressen

“No Tempo  Dividido e  Mar Novo”,

Edições Salamandra, 1985, p. 67



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Segunda-feira, 24 de Março de 2008
XXV - Álbum (1952 -1953 - 1954)

 

 

(Na praia. O menino aprende a linguagem das nuvens.)

 

Aquela nuvem

parece um cavalo ...

 

Ah! se eu pudesse montá-lo!

 

Aquela?

Mas já não é um cavalo,

é uma barca à vela.

 

Não faz mal.

Queria embarcar nela.

 

Aquela?

Mas já não é um navio,

é uma Torre Amarela

a vogar no frio

onde encerraram uma donzela.

 

Não faz mal.

Quero ter asas

para espreitar da janela.

 

Vá, lancem-me no mar

donde voam as nuvens

para ir numa delas

tomar mil formas

com sabor a sal

- labirinto de sombras e de cisnes

no céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal ...

 

José Gomes Ferreira

Poesia IV

Portugália Editora - Lisboa

1971 - 2ª edição



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Domingo, 23 de Março de 2008
minha aldeia

 

 

Minha aldeia é todo o mundo.

Todo o mundo me pertence.

Aqui me encontro e confundo

com gente de todo o mundo

que a todo o mundo pertence

 

 

Bate o sol na minha aldeia

com várias inclinações.

Ângulo novo, nova ideia;

outros graus, outras razões.

Que os homens da minha aldeia

são centenas de milhões.

 

 

Os homens da minha aldeia

Divergem por natureza.

O mesmo sonho os separa,

a mesma fria certeza

os afasta e desampara,

rumorejante seara

onde se odeia em beleza.

 

 

Os homens da minha aldeia

formigam raivosamente

com os pés colados ao chão.

Nessa prisão permanente,

cada qual é seu irmão.

Valências de fora e dentro

ligam tudo ao mesmo centro

numa inquebrável cadeia.

Longas raízes que imergem,

todos os homens convergem

no centro da minha aldeia.

 

 

António Gedeão

Poesias Completas (1956-1967)

Colecção Poetas de Hoje - Portugália Editora - Lisboa

6ª edição



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Sábado, 22 de Março de 2008
inventário

De que sedas se fizeram os teus dedos,

De que marfim as tuas coxas lisas,

De que alturas chegou ao teu andar

A graça da camurça com que pisas.

 

De que amoras maduras se espremeu

O gosto acidulado do teu seio,

De que Índias o bambu da tua cinta,

O oiro dos teus olhos, donde veio.

 

A que balanço de onda vais buscar

A linha serpentina dos quadris,

Onde nasce a frescura dessa fonte

Que sai da tua boca quando ris.

 

De que bosques marinhos se soltou

A folha de coral das tuas portas,

Que perfume te anuncia quando vens

Cercar-me de desejo a horas mortas.

 

José Saramago

(Os Poemas Possíveis)

Editorial Caminho: Lisboa (1985)



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